As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Na parede está uma grande moldura dourada. Iluminada para exposição, mas compreendendo nada. Dei com ela um dia de Dezembro, em 2019, na Fundação Calouste Gulbenkian. Parei, à sua frente. Fotografei-a. Talvez numa loja não o fizesse, não é o meu tipo de moldura, e não tenho em casa paredes para uma moldura destas. Mas acho que, naquele dia, parei, não em frente à moldura, mas em frente a outra coisa. Seria um erro anunciar a moldura como estando vazia: está cheia de algo que eu não sabia sequer que se podia emoldurar: o desejo. É que uma pequena nota informava que a moldura tem o tamanho exacto para uma obra de Francisco Goya, que Calouste Gulbenkian quisera comprar. Por isso, ali, naquela moldura, havia a ausência do quadro de Goya, o anúncio do desejo de Gulbenkian, e o fracasso das suas intenções.

Com certeza já ouviram falar da síndrome de Stendhal: consta que numa visita à Basílica de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi assaltado por uma comoção imensa diante de uns afrescos de Giotto. Descreveu os sentimentos como alguém que “caminhava com medo de cair”. Como a escrita serve tantas vezes para mostrar que há segredos partilhados, desde que Stendhal o descreveu, outros identificaram as suas réplicas. É um fenómeno associado a uma grande emoção provocada por uma obra de arte. Eu próprio já tive os meus momentos: já me aconteceu em São Martinho de Anta, no Espaço Miguel Torga, chorar ao ler a forma como o escritor se despedia do corvo Vicente – a propósito de uma leitura na rádio; e, pelo menos, uma outra vez na Galeria Tetryakov, em Moscovo, quando parei em frente a um quadro onde três crianças puxam um pequeno trenó com um grande recipiente de água; podemos ver que a água está congelada; que uma figura na sombra, empurra o trenó para ajudar as crianças; que, ao longe, há edifícios cobertos por um nevoeiro; e aqui, no primeiro plano do quadro, um cão que corre ao lado das três crianças. É um quadro belo. Podemos traduzir-lhe o nome para “Troika. Aprendizes de tarefeiros a carregar água”, foi pintado por Vasily Perov em 1866. É um quadro belo. E aconteceu-me estar a olhar para ele quando uma guia do museu se aproximou com dois visitantes estrangeiros. Ela falava em inglês, e eu ouvi. Ela disse: Alguns meses depois de estar este quadro pintado, alguém bateu à porta de Perov. Quando ele abriu, reconheceu a mãe de uma destas crianças. Ela mostrou-lhe uma bolsa com todo o dinheiro que conseguiu reunir. “O meu filho morreu”, terá dito, “e eu lembro-me do quadro que o senhor pintou. Tenha a bondade de mo vender.” Perov não podia vender o quadro, por mais que quisesse: já se encontrava no Museu. Mas podia trazer a mãe do rapaz até à sala onde estava o retrato do seu filho, enquanto aprendiz de tarefeiro.

Como quem já contou a história um milhar de vezes, e sabe o que impressiona, a guia disse: Assim que a mãe entrou na sala, gritou. Caiu, aqui, em frente ao quadro. E ficou horas a chorar.

Depois, a guia disse: continuamos?

E eles foram-se embora. Eu fiquei. Pensava naquela mulher. Olhava para as crianças no quadro e tentava imaginar como seriam, enquanto crianças. Comecei a pensar no momento em que à mãe da criança surgiu a ideia de procurar Vasily Perov para lhe comprar o quadro; o momento em que ela se convenceu de que esta ideia não era absurda, e saiu de casa; imaginei a sua viagem, em que pensaria, que obstáculos encontrara, teria ido a pé?; imaginei-a naquela sala; imaginei que estávamos os dois a olhar para o quadro de Perov, a demorar no rosto das crianças, a lamentar, com certeza.

Nature Boy, por Eden Ahbez.

E a sala transformou-se. De certa maneira, começou a fazer sentido. Eu via a mulher, estava atento à sua urgência. Conseguia sentir com ela, a luz do sol que entrava pela janela como uma espécie de reconforto. Depois, as solas de madeira contra o chão de mármore anunciaram a sua chegada. Meteu-me a mão no ombro, eu olhei e reconheci-o: era Stendhal. Havia uma espécie de ironia no seu olhar. Como se me desafiasse para regressar à realidade. Transforma-se a luz do sol no brilho de um candeeiro, as paredes tornam-se cinzentas, e, de repente, não estou na galeria Tetryakov, mas em Lisboa, na sala de exposições temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian, é Dezembro de 2019, e à minha frente uma grande moldura dourada, compreendendo nada.

Nos últimos tempos tenho pensado sobre as coisas a que prestamos atenção. Quando estamos em frente a uma moldura vazia, o que vemos? Quando nessa moldura há um quadro, o que valorizamos? Quando lemos algo, o que lemos? No dia-a-dia, o que vivemos? Quando nos sentamos numa sala para assistir a um espectáculo de teatro, sabemos que não estamos a ver o mesmo espectáculo que a pessoa ao nosso lado. John Berger discorreu sobre o assunto: A large part of seeing depends upon habit and convention. Que uma grande parte de ver vem do hábito e da convenção. Now, perspective centres everything on the eye of the beholder. A perspectiva concentra tudo no olho de quem vê. It is like a beam from a lighthouse, only instead of light travelling outwards, appearances travel in. É como a luz de um farol, só que em vez de a luz sair, as aparências entram. Our tradition of art called those appearances reality. Perspective makes the eye the centre of the visible world. A nossa tradição artística chamou às aparências realidade. A perspectiva fez do olho o centro do mundo visível.

E, por isso, somos, de certa maneira, cegos. Há muito que nos aparece à frente e que simplesmente não vemos. Por vezes, sinto que somos cada vez menos sensíveis ao mistério, por exemplo, ao incompreensível. A rapidez com que vivemos no mundo hoje, obriga-nos a focar a atenção no que é imediato ou compreensível. E começamos por conhecer os dias na sua imensidão, para os desenhar num calendário, e finalmente responder à agenda. Em 1985, Marguerite Duras, que lemos em Abril no Clube de Leitura de Peças de Teatro, dizia numa entrevista Quand on peut fair ele tour du monde en 8 jours ou 15 jours, pourquoi le faire? Dans le voyage, il y a le temps du voyage. Ce n’est pas voir vite. C’est voir et vivre en même temps. Vivre du voyage, ce ne sera plus possible. Quando podes dar a volta ao mundo em 8 ou 15 dias, para quê fazê-lo? Na viagem, há o tempo da viagem. Não é para se ver depressa. É para ver e viver ao mesmo tempo. Viver a viagem, isso vai deixar de ser possível.

De certa maneira, identifico-me nesta antecipação que Duras faz do ser humano nos anos 2000. E a soma do que vos cito de Berger e de Duras parece-me abrir caminho para uma reflexão sobre as consequências que estar confinado num lugar pode ter em nós, gente dos anos 2000. A pergunta de Duras não me sai da cabeça: se podes dar a volta ao mundo em 8 ou 15 dias, para quê fazê-lo?

Lembro-me de um dia falar com o Sérgio Coragem, um amigo que fiz na Escola Superior de Teatro e Cinema, e com quem estou a trabalhar neste momento, na criação do espectáculo “A Nossa Cidade”, onde à companhia a que o Sérgio pertence, os Auéééu, se juntam o Teatro da Cidade e uma outra companhia: Os Possessos; dizia, lembro-me de falar com o Sérgio sobre uma viagem que ele fez: um troço dos caminhos de Santiago. Caminhou durante nove dias. Fiquei com a memória de me ter falado de alguém que tocava guitarra quando ele chegou. Liguei-lhe. Falou-me na acústica da praça, na hospitalidade aos peregrinos, enviou-me gravações. Aqui, podemos ouvir o momento da chegada.

Ouvimos gravação do Sérgio.

Mas quando falámos ao telefone, a história da guitarra era bonita, mas uma espécie de pormenor. Comecei por partilhar com ele, que me interessava reflectir sobre a paciência que é preciso ter para fazer uma viagem destas. Que eu, nas minhas corridas matinais, vou percebendo que a parte difícil de correr não é começarem as doer os músculos, mas aborrecer-me com a corrida.

Imagino que já estejam cansados de me ouvir, por isso, aqui está o Sérgio.

– Andar com uma mochila às costas com 11 ou 12 kg, é mesmo uma coisa, um bocado… Epá, é um bocado transcendente. Quem consegue levar aquilo até ao fim é um bocado transcendente.

– Porque é que achas isso?

– Porque… É trasnscendente só no sentido em que eu na minha vida nunca tinha passado por aquela experiência, aquela dureza. Porque é duro. E sinto que mentalmente, ou psicologicamente se quiseres, e fisicamente eu ultrapassei um limite qualquer que eu tinha. Ou seja, eu tinha na minha vida chegado a um ponto que era aquele, e nunca tinha passado daquele ponto, e nesta caminhada eu senti que subi mais um bocadinho. Ou seja, transcendi  aquilo até onde eu tinha chegado. Entendes o sentido de transcender, aqui?

– Sim.

– Pronto, e isto ao nível físico e mental, ou psicológico. (…) O caminho é difícil e, realmente, se há alguma revelação que surge tem a ver com algo que estava, que se revelou em ti. De ti para ti. (…) Eu vou dizer-te uma coisa que me aconteceu quase como se fosse uma compulsão. Quando eu cheguei a Santiago de Compostela, quando, pronto, cheguei ao fim daquilo tudo… É emocionante pela experiência que tinha tido nos últimos dias, o facto de estar com muitas dores nos joelhos, nas costas… Aquilo foi um bocado sofrido, um bocado via sacra. Eu tenho um bocado de alergia a via sacras, mas quando um gajo está lá parece que aquilo faz mesmo parte. E eu estava tão… Aquilo foi tão duro, que eu cheguei lá e disse ao senhor que estava a atender, mas estava bué cansado, Guilherme, bué, bué cansado. Completamente exausto e emocionalmente de rastos, já tipo: que cena foi esta. Eu disse: olhe, o senhor não tem aí um sítio onde eu possa estar sozinho, só durante cinco minutos? E o gajo disse “Sim, senhor. Temos ali uma capelinha, e pode lá ficar sozinho durante um bocado.” E um senhor acompanhou-me e levou-me até essa capela dentro de uma parte da igreja, que era maior. Bem, eu entrei ali, fiquei sozinho ali, e fartei-me de chorar, Guilherme. Eu chorei tanto, tanto, tanto. E tu perguntas-me assim: e choraste porquê? E eu não sei bem. Não sei bem. Mas foi pela vida, sabes? Qualquer coisa… Chorar pela vida. Por ser boa. Por ser má. Por ser o que é, não sei. Por ser uma coisa… Se calhar chorei por ter tido direito a esse dom. Tenha sido um acaso ou não. Ou por ordem divina, ou por ordem, sei lá, do cosmos. Eu chorei por estar vivo, talvez. Por estar grato por estar vivo. Deve ter sido isso. Mas chorei tanto e lembrei-me de tanta gente, tanta gente. So pedia que essas pessoas tivessem uma boa vida, também. Foi uma descarga brutal. Isso foi muito forte. Lembro-me bem desse momento. E gostei desse momento.

Tempo.

“Quand on peut fair ele tour du monde en 8 jours ou 15 jours, pourquoi le faire? Dans le voyage, il y a le temps du voyage. Ce n’est pas voir vite. C’est voir et vivre en même temps. Vivre du voyage, ce ne sera plus possible.”

Encontramo-nos, enfim, neste lugar – entre o que Duras previu, e a caminhada do Sérgio. Entre a aceleração da técnica, e o mistério de uma caminhada. Quando lhe perguntei porque caminhou aqueles nove dias, o Sérgio disse que não havia uma razão específica. Foi um desafio. A razão da caminhada foi nascendo durante a viagem. Se puderes caminhar durante nove dias, para quê fazê-lo? Para nada, podia dizer o Sérgio. Ou para chegar ao fim, afiar-se o olhar, e cair no chão de uma capela em lágrimas. Ou chegar ao fim, afiar-se o olhar, e cair no chão de uma galeria de arte em lágrimas.

Com as idas a museus contemporâneos. A forma como nós nos deslocamos para ir a um museu, a forma como nós nos deslocamos para ir ao teatro. O descolar, o sairmos de casa para ir a uma sala de espectáculos não é muito diferente do que era feito antigamente com as peregrinações religiosas. Porque, no fundo, as pessoas saíam, iam a pé, para ver uma relíquia, e chegavam lá, viam a relíquia e voltavam para trás. E basicamente era isto. Há um historiador de arte que faz esta comparação. O que ele diz é que para ele não há nada de diferente entre as pessoas que saem de casa para ir ver a colecção do Van Gogh ao Museu de Van Gogh e as pessoas de toda a Itália, ou até de fora de Itália, que iam a pé para ver o sudário de Cristo, e outras relíquias. Porque são as relíquias que movimentavam a curiosidade. O espectador como peregrino. O espectador de arte como peregrino.

Ou aquela mãe, que caiu no chão da galeria Tetryakov algures no século XIX. Aquela mãe que foi à galeria à procura de um quadro e de um altar. Espectadora e peregrina por excelência.

Aproveito esta deixa do Sérgio. Até porque gosto da ideia de que uma ida a um museu ou a uma sala de espectáculos possa ter o valor de uma caminhada transcendente. Algo que nos faça ultrapassar, superar, aprofundar a nossa natureza. Algo que nos transforme – por mais ou menos tempo. Algo que nos anime o olhar. Que se John Berger nos disse que a tradição chamou às aparências realidade, e a perspectiva fez do olho o centro do mundo visível, e se nós aceitarmos a sua sugestão: então, para onde olhamos ganha uma nova importância: e acaba por ser na forma como olhamos, e como lemos o mundo, que encontramos quem somos.

Em Abril, portanto, no projecto CRETA, vamos ler “O Teatro da Amante Inglesa”, de Marguerite Duras. A sessão será conduzida pela Gi da Conceição – que coordena o clube este ano. Podem conhecer a sua selecção de textos no nosso site, e inscrever-se já para todas as sessões. Mas, antes, ainda vamos conversar com o Gonçalo Amorim sobre O Princípio de um Espectáculo, logo no início do mês. Com os auditórios fechados, a conversa acontece por zoom, e podem inscrever-se no nosso site. Ainda em Abril, desafiámos a companhia Mochos no Telhado, a abrir as portas dos ensaios para “Kámarad”, num Ensaio Aberto. Para além de conhecerem a forma como o espectáculo está a ser construído, pode até acontecer que deixem o eco das vossas vozes no trabalho desta companhia. Nos bastidores, também estão a acontecer coisas: o Laboratório de Dramaturgia avança, fulgurante. São 10 dramaturgos um pouco por todo o país, a escrever com Viseu na mira. E, se passarem por Viseu em Abril, não estranhem se se cruzarem com a Keli Freitas: é que ela estará pela cidade a pesquisar para a escrita do seu episódio de O Lugar de Onde se Ouve.

E agora, antecipando um pouco, mas sempre a propósito: em Maio começamos uma série de Exercícios de Escuta. No Passeio dos Cónegos, na Sé de Viseu, uma varanda no ponto mais alto da cidade, três actores vão ler, sobre os sons da cidade, um conjunto de textos, provocando os espectadores a escutar o diálogo que se estabelece entre o texto e a cidade. Começamos com um encontro entre André Albuquerque e Fernando Pessoa. Porque é tão oportuno, e porque estive a trabalhar com o André, pedi-lhe que lesse um poema de Alberto. E é assim que terminamos esta carta.

André a ler:

VII

 Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu. Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt

O meu nome é Guilherme Gomes. Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.

Neste episódio ouvimos excertos do primeiro episódio de “Ways of Seeing, de John Berger, produzido pela BBC, uma entrevista de Marguerite Duras que encontrei na internet, mas não sei a origem – se alguém souber, por favor não hesite, ouvimos também Eden Ahdez, cantar o seu “Nature Boy”, o João Reixa tocar guitarra, os passos do Sérgio. A todos, uns mais eficazmente que outros, o meu agradecimento.

CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.

Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.