17.ª Carta: “O resto é silêncio”

06/18/2021Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

(Música animada.)

“Alguma vez tiveram de esperar na farmácia, e se puseram a ver como o farmacêutico preparava a receita? Numa balança com peças muito pequenas pesa grama a grama, ou onça a onça, todas as substâncias e pós que compõem o produto final. Algo parecido é o que faço quando vos conto alguma coisa na rádio. Os meus pesos são os minutos e devo utilizá-los com absoluta precisão para calcular quantos devo reservar para um assunto e quantos para outro para que a mistura seja correcta. E perguntam-se: porquê? Ora, quem quer que deseje contar a história do terramoto de Lisboa começará pelo princípio. E contará, depois, tudo o que aconteceu. Mas, se eu o fizesse dessa maneira, não creio que vos conseguisse entreter. Uma casa cai a seguir à outra, uma família perece a seguir à outra; o horror do fogo que se propaga por todos os lados e o horror da água, a escuridão, os assaltos, os gemidos dos feridos e os lamentos do que procuram os seus – ninguém quereria ouvir isto e mais nada, mas isto é o que aconteceu e o que mais ou menos acontece em toda a grande catástrofe natural.”

Começa assim o episódio “O Terramoto de Lisboa”, do programa de rádio “A Hora da Juventude”, de Walter Benjamin, que nos ensina que contar uma história na rádio é uma gestão dos minutos. Quanto tempo se dedica a cada detalhe – de maneira a segurar a atenção do público.

Percebemos que para Benjamin não basta elencar os acontecimentos, será preciso contextualizá-los, humanizá-los com relatos reais, aproximá-lo do ouvinte.

Apesar da forma mais ou menos brincada como li o seu texto, a abordagem de Benjamin neste episódio, e as ideias que ele transmite, têm, poderíamos sugerir, uma preocupação mais jornalística ou histórica do que artística. Aconselha-nos a não contar apenas os factos, e a saber construir uma narrativa, mas responde à realidade empírica. Procura contar o que aconteceu realmente num lugar, num momento. Responde às famosas perguntas do quem, do quê, do como, do quando, e do porquê aplicadas à realidade que poderíamos chamar real.

Ando sempre a remoer este assunto: contar histórias. E estou sempre à procura de livros ou filmes ou entrevistas, o que quer que seja que me ensine sobre o assunto – se tiverem algum conselho, não hesitem; estas cartas, aliás, servem para mim como uma espécie de ginásio: como se organizam as ideias, como se escolhe o assunto, como se expõe. No meu caso, projecto esta procura sempre na criação artística. E, nesse sentido, parece-me que quanto mais pesquiso menos me esclareço.

Pensei muito sobre isso enquanto via o “HAMLET: a monologue”, a versão do Hamlet que Bob Wilson fez e mostrámos em Maio no Forum Viseu. A propósito dessa projecção, tive a oportunidade de entrevistar o próprio Robert Wilson por zoom. E a certa altura, ele diz
Bob Wilson: If you read, tonight, Hamlet, you’re gonna think about it one way, and if you read Hamlet the next morning you can think about it in a very different way, and if you read it the next evening you can think about it still in a different way. Shakespeare could never completely understand what he wrote. It’s full of meanings. So it’s something we can reflect on.

How all occasions do inform against me,
And spur my dull revenge!

I learned it when I was 12 and I’m almost 80 and I can still say it. And everytime I say it i can think about it in a different way. So it’s not to say that it doesn’t have a meaning, it’s full of meanings. But to attach a meaning and interpretation to what we do will negate all the other thoughts. So the reason to work is to say: what is it? What am I saying? And if you approach it with a question, ten years from now, twenty years from now, thirty years from now, a hundred years from now, we can still be reflecting on it, because it’s full of meanings.

Há, neste conselho de Bob Wilson, uma espécie de elogio do enigma. Se fosse um jornalista, ou um académico, provavelmente não me ia satisfazer uma proposta tão enigmática. Mas na criação artística, muita gente faz o elogio do enigma. Quando ouvimos ou lemos o que alguns artistas disseram sobre o assunto, apresenta-se misteriosamente fácil contar uma história.
Lembrei-me de um livro. É do Álvaro Siza, e é um dos livros que não me sai da cabeça. Chama-se “Imaginar a Evidência”. A certa altura, sobre desenhar móveis, Siza escreve que

A ajuda mais importante é dada pela percepção da essência de cada móvel: essencialmente o que é?
A minha preocupação principal em desenhar, suponhamos, uma cadeira é a de que pareça uma cadeira. É a primeira questão. Hoje desenham-se muitas cadeiras que parecem outra coisa. A necessidade de originalidade e diferença conduz quase sempre ao abandono da essência de um determinado objecto.
Todos os objectos têm uma história. E contudo, vistos à distância, podem ser ligeiramente diferentes e é exactamente nesta ligeira diferença que se esconde o seu verdadeiro significado no tempo.

O elogio da essência. No caso é uma cadeira, mas se fosse uma narrativa, teríamos aqui uma bela pista: ir à procura da essência da narrativa. Anterior à forma que tenha, ou ao significado no tempo. Não ceder à necessidade de originalidade e diferença. No fundo, as perguntas que Bob Wilson fez: o que é? O que estou a dizer?
Isto lembra-me uma história que ouvi contada por Ingmar Bergman, numa entrevista.
Dizia ele que
Durante a Idade Média, a um certo carpinteiro chinês foi dada a tarefa de fazer um suporte para o sino do templo. Era uma missão muito honrada para este carpinteiro, e ele começou a trabalhar nela. Enquanto trabalhava, começou a pensar no dinheiro que ia ganhar por fazer o suporte para o sino, e aconteceu que o trabalho não saiu grande coisa. E, uma vez que ele era um carpinteiro chinês muito ambicioso, ele começou de novo. Nesta segunda tentativa, ainda assim, enquanto ele trabalhava começou a pensar como ia conquistar a admiração de toda a gente por causa deste suporte tão belo, e esta tentativa foi um falhanço, também. Portanto ele destruiu o suporte e começou pela terceira vez. Mas desta vez, ocorreu-lhe que alcançaria a imortalidade com este suporte para o sino, e a terceira tentativa também não correu bem. De maneira que o nosso carpinteiro chinês ficou furioso, como só um carpinteiro chinês pode ficar, e decidiu tentar uma quarta vez. Desta vez ele tinha apenas um pensamento na sua cabeça: criar um suporte para o sino. E, desta vez, ele conseguiu. E, ao conseguir, conquistou admiração, dinheiro e imortalidade.

Bob Dylan: Are you gonna see the concert tonight? Are you gonna ear it? Ok, you ear it and see it, and it’s gonna happen fast, and you’re not gonna get it all, and you might even ear the wrong words, you know? And then afterwards, I will be able to talk to you afterwards, but I don’t have nothing to say about this thins I write, I mean, I just write them, I don’t have to say anything about it, I don’t write them for a reason, there’s no great message. You know, if you wanna tell other people that, go ahead and tell’em, but I’m not gonna have to answer to it.

Quando Bob Dylan respondeu assim a um jornalista da revista Time, que acho que lhe tinha perguntado sobre o significado de alguma canção, parece-me que estava a reagir por isto: não havia significados maiores – pelo menos é o que nos diz; o seu trabalho terminou na criação da obra. Não houve uma agenda, ou um contexto: o urgente foi escrever a canção, ignorando o que a canção poderia provocar ou significar. A sua importância, as suas referências, talvez tudo isto até ultrapasse a consciência do próprio artista. Sem que seja planeado. Lembro-me de ler algures uma outra citação de Bergman em que ele diz que a pergunta mais difícil de responder é: o que estás a escrever é sobre quê?

Jornalista – Porque é que resolver fazer o filme assim?
João César Monteiro – porque não o pude fazer assado. O que é que queriam? Queriam telenovela? Não gosto da televisão. Dispenso. Não tem história. Quando contam uma história fazem uns efeitos de luz, não tem história.

Em tudo o que ouvimos até agora, parece que o significado do objecto no tempo é alheio ao próprio artista. Tenho encontrado esta sugestão de que a ignorância do artista em relação ao contexto da obra, esta espécie de ingenuidade ou entrega completa e se calhar alheia ao mundo, dizia, tenho encontrado quem encare isto como uma virtude em muitos lugares: nas aulas de poesia do Jorge Luis Borges, ele fala da literatura contemporânea como sendo muito sisuda, porque muito consciente de si; aconselha os escritores a não se editarem enquanto escrevem, a não compreenderem tudo o que escrevem. Faz o elogio do mistério. E na obra “O Grau Zero da Escrita”, de Roland Barthes, dou com este pensamento:

A expansão dos factos políticos e sociais no campo da consciência das Letras produziu um novo tipo de escritor, situado a meio caminho entre o militante e o escritor, tirando do primeiro uma imagem ideal do homem comprometido e do segundo a ideia de que a obra escrita é um acto. Ao mesmo tempo que o intelectual substitui o escritor, nasce nas revistas e nos ensaios uma escrita militante, inteiramente desprovida de estilo, e que é como que uma linguagem profissional da “presença”.

O intelectual ainda é apenas um escritor mal transformado, e, a não ser que se afunde e se torne para sempre um militante que já não escreve (alguns, por definição esquecidos, fizeram-no), é obrigado a voltar a partir da literatura como um instrumento intacto e fora de moda. Estas escritas intelectuais são pois instáveis, permanecem literárias na medida em que são impotentes e só são políticas pela sua obsessão do compromisso. Em suma, trata-se ainda de escritas éticas, em que a consciência daquele que escreve (já não ousamos dizer do escritor) encontra a imagem tranquilizadora de uma salvação colectiva.

Sophia: Havia um poeta que dizia que num poema o primeiro verso era dado pelos deuses, os outros eram feitos pelo poeta. Está claro que estas imagens são sempre um pouco, apenas… Dizem como as coisas se passam de uma maneira um bocado geral. Na realidade, eu sempre procurei escrever os versos que existem. Quer dizer, aqueles que são como que a verdade das coisas, e não uma verdade escrita em mim sobre as coisas. Isto é, sempre considerei, no fundo, que, aliás, já tem sido tanta gente, que o poeta é um lugar onde o poema se escreve. E que há uma atenção, a primeira qualidade dum poeta é uma atenção enorme ao universo, é encontrar uma certa transparência onde as coisas aparecem, onde o mundo se projecta e aparece e do qual ele toma consciência e ele traz à palavra. Uma coisa importante da poesia: a poesia é a palavra e a poesia nasce sempre do caos, da confusão da qual o homem emerge através da palavra. E, por isso, não se trata bem de improviso. É evidente que há uma parte de ofício num poeta. (…) O que o poeta cultiva em si é essa espécie de transparência, de atenção, que torna possível o aparecimento do poema. Eu muitas vezes digo que um poeta escreve, ao contrário dum ensaísta, por exemplo, escreve não para dizer o que sabe mas para saber o que sabe. É uma diferença fundamental.

Este é um lugar em que acredito. Pelo menos é uma ideia inspiradora, e que Sophia de Mello Breyner refere não apenas nesta entrevista, mas em alguns textos que adoro e que se chamam “Arte Poética”. No fundo, apresenta tudo isto como uma coisa muito menos formal; como um assunto da honestidade, ou da sinceridade. A arte como o exercício de descobrir qualquer coisa mais do que criar qualquer coisa. Claro que não prescinde da dimensão de ofício, mas é um ofício ao serviço de qualquer coisa simples. Um ofício que, de certa maneira, é um jogo. Nos ensaios de teatro sempre senti que durante uma primeira parte do trabalho estou a descobrir uma espécie de universo, que se testam os limites do pormenor neste território para que seja possível, a certa altura, habitá-lo livremente. Entregar-me. Brincar nesse lugar.

Lembro-me da ironia de que Cervantes usa para abrir o Dom Quixote (ele próprio um bom exemplo para a nossa conversa), fazendo pouco dos formalismos intelectuais dos seus contemporâneos (participando neles, ainda assim); ou do aborrecimento que podemos sentir nos escritos de Gertrude Stein sobre literatura – digo aborrecimento, porque ela escreveu como quem rompe com as coisas.

Parece que não é apenas tratando os minutos como pesos na balança que se consegue construir uma narrativa. Por vezes, tudo isto, todos estes jogos e reflexões, todo este trabalho, toda a agonia e suor servem um propósito misterioso. Diria Faulkner que para escrever sobre os problemas do espírito. Para escrever sobre os conflitos do coração humano consigo mesmo, a única coisa porque vale a pena suportar os martírios da escrita.

Faulkner: Our tragedy today is a general and universal physical fear so long sustained by now that we can even bear it. There are no longer problems of the spirit. There is only the question: When will I be blown up? Because of this, the young man or woman writing today has forgotten the problems of the human heart in conflict with itself which alone can make good writing because only that is worth writing about, worth the agony and the sweat.

Chegamos ao fim desta pequena caminhada com nome de carta. Uma caminhada confusa, mas num bairro óptimo, cruzámo-nos com gente brilhante. Percebo agora que comecei por querer saber como se conta uma história, para acabar a pensar no ofício do poeta (do artista, mas em particular focado na escrita). Percebo que se confunde a história com o seu contador. Hei de continuar esta procura. E tudo porque um príncipe imaginado, à beira da morte, pediu ao seu amigo que aguentasse um pouco mais o sofrimento que é estar vivo para contar a sua história.

Pois é, poetas, bons amigos, ficam com estas sugestões: lancemo-nos para o ofício de contadores de histórias com as perguntas de Robert Wilson. E como se contam os problemas do coração, senhor Faulkner? Como se cultiva a transparência, estimada Sophia? Como resistimos ao abandono da essência, mestre Siza?

Bob Wilson (excerto de “Hamlet: a monologue”):
Ó Deus, que nome perdido deixarei de mim –
De actos carnais, sangrentos, contra a natureza,
De sentenças acidentais, de assassínios ao acaso,
De mortes preparadas pela manha ou pela força,
E, no final, os estratagemas, enganando-se,
Recaíram sobre a cabeça do estratega; tudo isso posso –
Tivesse eu tempo,
Se a morte, oficial, cruel, não fosse tão pontual nas capturas.
Ai, poderia dizer-vos –
Porém deixai – – – O resto é silêncio.

As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a Newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral, um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu. Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt

O meu nome é Guilherme Gomes, despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email: creta@teatrodacidade.pt

Neste episódio ouvimos um conjunto de entrevistas e discursos que deixo na transcrição, e um excerto de HAMLET: a monologue, um espectáculo de Bob Wilson.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu, através do VISEU CULTURA.

16.ª Carta: “O que está na moldura”

04/03/2021Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Na parede está uma grande moldura dourada. Iluminada para exposição, mas compreendendo nada. Dei com ela um dia de Dezembro, em 2019, na Fundação Calouste Gulbenkian. Parei, à sua frente. Fotografei-a. Talvez numa loja não o fizesse, não é o meu tipo de moldura, e não tenho em casa paredes para uma moldura destas. Mas acho que, naquele dia, parei, não em frente à moldura, mas em frente a outra coisa. Seria um erro anunciar a moldura como estando vazia: está cheia de algo que eu não sabia sequer que se podia emoldurar: o desejo. É que uma pequena nota informava que a moldura tem o tamanho exacto para uma obra de Francisco Goya, que Calouste Gulbenkian quisera comprar. Por isso, ali, naquela moldura, havia a ausência do quadro de Goya, o anúncio do desejo de Gulbenkian, e o fracasso das suas intenções.

Com certeza já ouviram falar da síndrome de Stendhal: consta que numa visita à Basílica de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi assaltado por uma comoção imensa diante de uns afrescos de Giotto. Descreveu os sentimentos como alguém que “caminhava com medo de cair”. Como a escrita serve tantas vezes para mostrar que há segredos partilhados, desde que Stendhal o descreveu, outros identificaram as suas réplicas. É um fenómeno associado a uma grande emoção provocada por uma obra de arte. Eu próprio já tive os meus momentos: já me aconteceu em São Martinho de Anta, no Espaço Miguel Torga, chorar ao ler a forma como o escritor se despedia do corvo Vicente – a propósito de uma leitura na rádio; e, pelo menos, uma outra vez na Galeria Tetryakov, em Moscovo, quando parei em frente a um quadro onde três crianças puxam um pequeno trenó com um grande recipiente de água; podemos ver que a água está congelada; que uma figura na sombra, empurra o trenó para ajudar as crianças; que, ao longe, há edifícios cobertos por um nevoeiro; e aqui, no primeiro plano do quadro, um cão que corre ao lado das três crianças. É um quadro belo. Podemos traduzir-lhe o nome para “Troika. Aprendizes de tarefeiros a carregar água”, foi pintado por Vasily Perov em 1866. É um quadro belo. E aconteceu-me estar a olhar para ele quando uma guia do museu se aproximou com dois visitantes estrangeiros. Ela falava em inglês, e eu ouvi. Ela disse: Alguns meses depois de estar este quadro pintado, alguém bateu à porta de Perov. Quando ele abriu, reconheceu a mãe de uma destas crianças. Ela mostrou-lhe uma bolsa com todo o dinheiro que conseguiu reunir. “O meu filho morreu”, terá dito, “e eu lembro-me do quadro que o senhor pintou. Tenha a bondade de mo vender.” Perov não podia vender o quadro, por mais que quisesse: já se encontrava no Museu. Mas podia trazer a mãe do rapaz até à sala onde estava o retrato do seu filho, enquanto aprendiz de tarefeiro.

Como quem já contou a história um milhar de vezes, e sabe o que impressiona, a guia disse: Assim que a mãe entrou na sala, gritou. Caiu, aqui, em frente ao quadro. E ficou horas a chorar.

Depois, a guia disse: continuamos?

E eles foram-se embora. Eu fiquei. Pensava naquela mulher. Olhava para as crianças no quadro e tentava imaginar como seriam, enquanto crianças. Comecei a pensar no momento em que à mãe da criança surgiu a ideia de procurar Vasily Perov para lhe comprar o quadro; o momento em que ela se convenceu de que esta ideia não era absurda, e saiu de casa; imaginei a sua viagem, em que pensaria, que obstáculos encontrara, teria ido a pé?; imaginei-a naquela sala; imaginei que estávamos os dois a olhar para o quadro de Perov, a demorar no rosto das crianças, a lamentar, com certeza.

Nature Boy, por Eden Ahbez.

E a sala transformou-se. De certa maneira, começou a fazer sentido. Eu via a mulher, estava atento à sua urgência. Conseguia sentir com ela, a luz do sol que entrava pela janela como uma espécie de reconforto. Depois, as solas de madeira contra o chão de mármore anunciaram a sua chegada. Meteu-me a mão no ombro, eu olhei e reconheci-o: era Stendhal. Havia uma espécie de ironia no seu olhar. Como se me desafiasse para regressar à realidade. Transforma-se a luz do sol no brilho de um candeeiro, as paredes tornam-se cinzentas, e, de repente, não estou na galeria Tetryakov, mas em Lisboa, na sala de exposições temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian, é Dezembro de 2019, e à minha frente uma grande moldura dourada, compreendendo nada.

Nos últimos tempos tenho pensado sobre as coisas a que prestamos atenção. Quando estamos em frente a uma moldura vazia, o que vemos? Quando nessa moldura há um quadro, o que valorizamos? Quando lemos algo, o que lemos? No dia-a-dia, o que vivemos? Quando nos sentamos numa sala para assistir a um espectáculo de teatro, sabemos que não estamos a ver o mesmo espectáculo que a pessoa ao nosso lado. John Berger discorreu sobre o assunto: A large part of seeing depends upon habit and convention. Que uma grande parte de ver vem do hábito e da convenção. Now, perspective centres everything on the eye of the beholder. A perspectiva concentra tudo no olho de quem vê. It is like a beam from a lighthouse, only instead of light travelling outwards, appearances travel in. É como a luz de um farol, só que em vez de a luz sair, as aparências entram. Our tradition of art called those appearances reality. Perspective makes the eye the centre of the visible world. A nossa tradição artística chamou às aparências realidade. A perspectiva fez do olho o centro do mundo visível.

E, por isso, somos, de certa maneira, cegos. Há muito que nos aparece à frente e que simplesmente não vemos. Por vezes, sinto que somos cada vez menos sensíveis ao mistério, por exemplo, ao incompreensível. A rapidez com que vivemos no mundo hoje, obriga-nos a focar a atenção no que é imediato ou compreensível. E começamos por conhecer os dias na sua imensidão, para os desenhar num calendário, e finalmente responder à agenda. Em 1985, Marguerite Duras, que lemos em Abril no Clube de Leitura de Peças de Teatro, dizia numa entrevista Quand on peut fair ele tour du monde en 8 jours ou 15 jours, pourquoi le faire? Dans le voyage, il y a le temps du voyage. Ce n’est pas voir vite. C’est voir et vivre en même temps. Vivre du voyage, ce ne sera plus possible. Quando podes dar a volta ao mundo em 8 ou 15 dias, para quê fazê-lo? Na viagem, há o tempo da viagem. Não é para se ver depressa. É para ver e viver ao mesmo tempo. Viver a viagem, isso vai deixar de ser possível.

De certa maneira, identifico-me nesta antecipação que Duras faz do ser humano nos anos 2000. E a soma do que vos cito de Berger e de Duras parece-me abrir caminho para uma reflexão sobre as consequências que estar confinado num lugar pode ter em nós, gente dos anos 2000. A pergunta de Duras não me sai da cabeça: se podes dar a volta ao mundo em 8 ou 15 dias, para quê fazê-lo?

Lembro-me de um dia falar com o Sérgio Coragem, um amigo que fiz na Escola Superior de Teatro e Cinema, e com quem estou a trabalhar neste momento, na criação do espectáculo “A Nossa Cidade”, onde à companhia a que o Sérgio pertence, os Auéééu, se juntam o Teatro da Cidade e uma outra companhia: Os Possessos; dizia, lembro-me de falar com o Sérgio sobre uma viagem que ele fez: um troço dos caminhos de Santiago. Caminhou durante nove dias. Fiquei com a memória de me ter falado de alguém que tocava guitarra quando ele chegou. Liguei-lhe. Falou-me na acústica da praça, na hospitalidade aos peregrinos, enviou-me gravações. Aqui, podemos ouvir o momento da chegada.

Ouvimos gravação do Sérgio.

Mas quando falámos ao telefone, a história da guitarra era bonita, mas uma espécie de pormenor. Comecei por partilhar com ele, que me interessava reflectir sobre a paciência que é preciso ter para fazer uma viagem destas. Que eu, nas minhas corridas matinais, vou percebendo que a parte difícil de correr não é começarem as doer os músculos, mas aborrecer-me com a corrida.

Imagino que já estejam cansados de me ouvir, por isso, aqui está o Sérgio.

– Andar com uma mochila às costas com 11 ou 12 kg, é mesmo uma coisa, um bocado… Epá, é um bocado transcendente. Quem consegue levar aquilo até ao fim é um bocado transcendente.

– Porque é que achas isso?

– Porque… É trasnscendente só no sentido em que eu na minha vida nunca tinha passado por aquela experiência, aquela dureza. Porque é duro. E sinto que mentalmente, ou psicologicamente se quiseres, e fisicamente eu ultrapassei um limite qualquer que eu tinha. Ou seja, eu tinha na minha vida chegado a um ponto que era aquele, e nunca tinha passado daquele ponto, e nesta caminhada eu senti que subi mais um bocadinho. Ou seja, transcendi  aquilo até onde eu tinha chegado. Entendes o sentido de transcender, aqui?

– Sim.

– Pronto, e isto ao nível físico e mental, ou psicológico. (…) O caminho é difícil e, realmente, se há alguma revelação que surge tem a ver com algo que estava, que se revelou em ti. De ti para ti. (…) Eu vou dizer-te uma coisa que me aconteceu quase como se fosse uma compulsão. Quando eu cheguei a Santiago de Compostela, quando, pronto, cheguei ao fim daquilo tudo… É emocionante pela experiência que tinha tido nos últimos dias, o facto de estar com muitas dores nos joelhos, nas costas… Aquilo foi um bocado sofrido, um bocado via sacra. Eu tenho um bocado de alergia a via sacras, mas quando um gajo está lá parece que aquilo faz mesmo parte. E eu estava tão… Aquilo foi tão duro, que eu cheguei lá e disse ao senhor que estava a atender, mas estava bué cansado, Guilherme, bué, bué cansado. Completamente exausto e emocionalmente de rastos, já tipo: que cena foi esta. Eu disse: olhe, o senhor não tem aí um sítio onde eu possa estar sozinho, só durante cinco minutos? E o gajo disse “Sim, senhor. Temos ali uma capelinha, e pode lá ficar sozinho durante um bocado.” E um senhor acompanhou-me e levou-me até essa capela dentro de uma parte da igreja, que era maior. Bem, eu entrei ali, fiquei sozinho ali, e fartei-me de chorar, Guilherme. Eu chorei tanto, tanto, tanto. E tu perguntas-me assim: e choraste porquê? E eu não sei bem. Não sei bem. Mas foi pela vida, sabes? Qualquer coisa… Chorar pela vida. Por ser boa. Por ser má. Por ser o que é, não sei. Por ser uma coisa… Se calhar chorei por ter tido direito a esse dom. Tenha sido um acaso ou não. Ou por ordem divina, ou por ordem, sei lá, do cosmos. Eu chorei por estar vivo, talvez. Por estar grato por estar vivo. Deve ter sido isso. Mas chorei tanto e lembrei-me de tanta gente, tanta gente. So pedia que essas pessoas tivessem uma boa vida, também. Foi uma descarga brutal. Isso foi muito forte. Lembro-me bem desse momento. E gostei desse momento.

Tempo.

“Quand on peut fair ele tour du monde en 8 jours ou 15 jours, pourquoi le faire? Dans le voyage, il y a le temps du voyage. Ce n’est pas voir vite. C’est voir et vivre en même temps. Vivre du voyage, ce ne sera plus possible.”

Encontramo-nos, enfim, neste lugar – entre o que Duras previu, e a caminhada do Sérgio. Entre a aceleração da técnica, e o mistério de uma caminhada. Quando lhe perguntei porque caminhou aqueles nove dias, o Sérgio disse que não havia uma razão específica. Foi um desafio. A razão da caminhada foi nascendo durante a viagem. Se puderes caminhar durante nove dias, para quê fazê-lo? Para nada, podia dizer o Sérgio. Ou para chegar ao fim, afiar-se o olhar, e cair no chão de uma capela em lágrimas. Ou chegar ao fim, afiar-se o olhar, e cair no chão de uma galeria de arte em lágrimas.

Com as idas a museus contemporâneos. A forma como nós nos deslocamos para ir a um museu, a forma como nós nos deslocamos para ir ao teatro. O descolar, o sairmos de casa para ir a uma sala de espectáculos não é muito diferente do que era feito antigamente com as peregrinações religiosas. Porque, no fundo, as pessoas saíam, iam a pé, para ver uma relíquia, e chegavam lá, viam a relíquia e voltavam para trás. E basicamente era isto. Há um historiador de arte que faz esta comparação. O que ele diz é que para ele não há nada de diferente entre as pessoas que saem de casa para ir ver a colecção do Van Gogh ao Museu de Van Gogh e as pessoas de toda a Itália, ou até de fora de Itália, que iam a pé para ver o sudário de Cristo, e outras relíquias. Porque são as relíquias que movimentavam a curiosidade. O espectador como peregrino. O espectador de arte como peregrino.

Ou aquela mãe, que caiu no chão da galeria Tetryakov algures no século XIX. Aquela mãe que foi à galeria à procura de um quadro e de um altar. Espectadora e peregrina por excelência.

Aproveito esta deixa do Sérgio. Até porque gosto da ideia de que uma ida a um museu ou a uma sala de espectáculos possa ter o valor de uma caminhada transcendente. Algo que nos faça ultrapassar, superar, aprofundar a nossa natureza. Algo que nos transforme – por mais ou menos tempo. Algo que nos anime o olhar. Que se John Berger nos disse que a tradição chamou às aparências realidade, e a perspectiva fez do olho o centro do mundo visível, e se nós aceitarmos a sua sugestão: então, para onde olhamos ganha uma nova importância: e acaba por ser na forma como olhamos, e como lemos o mundo, que encontramos quem somos.

Em Abril, portanto, no projecto CRETA, vamos ler “O Teatro da Amante Inglesa”, de Marguerite Duras. A sessão será conduzida pela Gi da Conceição – que coordena o clube este ano. Podem conhecer a sua selecção de textos no nosso site, e inscrever-se já para todas as sessões. Mas, antes, ainda vamos conversar com o Gonçalo Amorim sobre O Princípio de um Espectáculo, logo no início do mês. Com os auditórios fechados, a conversa acontece por zoom, e podem inscrever-se no nosso site. Ainda em Abril, desafiámos a companhia Mochos no Telhado, a abrir as portas dos ensaios para “Kámarad”, num Ensaio Aberto. Para além de conhecerem a forma como o espectáculo está a ser construído, pode até acontecer que deixem o eco das vossas vozes no trabalho desta companhia. Nos bastidores, também estão a acontecer coisas: o Laboratório de Dramaturgia avança, fulgurante. São 10 dramaturgos um pouco por todo o país, a escrever com Viseu na mira. E, se passarem por Viseu em Abril, não estranhem se se cruzarem com a Keli Freitas: é que ela estará pela cidade a pesquisar para a escrita do seu episódio de O Lugar de Onde se Ouve.

E agora, antecipando um pouco, mas sempre a propósito: em Maio começamos uma série de Exercícios de Escuta. No Passeio dos Cónegos, na Sé de Viseu, uma varanda no ponto mais alto da cidade, três actores vão ler, sobre os sons da cidade, um conjunto de textos, provocando os espectadores a escutar o diálogo que se estabelece entre o texto e a cidade. Começamos com um encontro entre André Albuquerque e Fernando Pessoa. Porque é tão oportuno, e porque estive a trabalhar com o André, pedi-lhe que lesse um poema de Alberto. E é assim que terminamos esta carta.

André a ler:

VII

 Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu. Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt

O meu nome é Guilherme Gomes. Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.

Neste episódio ouvimos excertos do primeiro episódio de “Ways of Seeing, de John Berger, produzido pela BBC, uma entrevista de Marguerite Duras que encontrei na internet, mas não sei a origem – se alguém souber, por favor não hesite, ouvimos também Eden Ahdez, cantar o seu “Nature Boy”, o João Reixa tocar guitarra, os passos do Sérgio. A todos, uns mais eficazmente que outros, o meu agradecimento.

CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.

Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Décima Quinta Carta de CRETA

08/01/2020Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Essa cena de estar perdida é muito fixe.
Porquê?
Porque é o teu instinto que tem de se safar.
(música)
Olá.
É verdade, saltámos uns dias. Não vos falei no início de julho porque, enfim, estava neste lugar de que a Sónia Teixeira está a falar: andava perdido. Nem sempre é fácil encontrar o caminho para as cartas que vos dirijo. E entre escritas e candidaturas, entre viagens e corridas, entre sonhos e desilusões não consegui encontrar o caminho para uma carta no início de julho.
Mas aqui estamos, e este mês “encontrar o caminho” pode ser uma pista apropriada para olhar para a programação de CRETA. Parece que não fazemos outra coisa. Todas as propostas são procuras. Como se começássemos uma caminhada sem saber onde a terminaremos. Uma espécie de andar na vadiagem. Vaguear procurando guardar o que a caminhada nos dá. Foi assim que o professor Agostinho da Silva justificou um conjunto de conversas para que se disponibilizou e a que se chamou “Conversas Vadias”, e é assim que, pessoalmente, encaro a vida.
Na gravação que ouvem de fundo, estou a caminhar com a Sónia no Monte de Santa Luzia, à procura do lugar onde haveria de acontecer o recital que todos os domingos de Julho, a Sónia repetiu. Um recital sobre o conto “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Um conto em que de um caminho nada parece recuperável. Tudo desaparece, todas as referências que fomos encontrando para fazer o caminho de volta. Como num labirinto. Parece o contrário do que vos disse até agora, mas, para mim, a pergunta é: qual é o fio de Ariadne que nos há de salvar?
O meu nome é Guilherme Gomes e esta é a décima quinta carta de Creta.
(fim da música)
– Bem, este lugar está cheio de memórias. Houve alguém que veio para aqui cortar madeira, e parece que passou aqui um monstro.
– Se calhar passou.
– O Monstro do Monte de Santa Luzia.
(tempo)
Antes de mais, contar-vos o que não vos contei no início de Julho, ou seja, apresentar em retrospetiva o que ia antecipar: começámos o mês por receber a visita do José António Tenente, para falar d’O Princípio de um Espectáculo. A Nídia Roque conduziu a conversa. E, durante mais de uma hora, ouvimos o que inspira, como trabalha, o que espera, o que comove um dos figurinistas mais activos do país. Ao Zé e à Nídia, um agradecimento especial. Mais para a frente, lançamos um podcast em que podem ouvir um pouco desta conversa.
Depois, estreámos o recital “Regar a Terra”, um recital que vive da relação da Sónia Teixeira com o conto “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner.
Ainda houve tempo para um clube de leitura. Voltámos aos claustros da Sé de Viseu para ler “A Orelha de Deus”, de Jenny Shwartz. Ouvimos o lugar que a Raquel Castro imaginou e habitou no Lugar de Onde se Ouve, e rematámos o mês com outra conversa sobre O Princípio de um Espectáculo agora com o Jorge Fraga, numa tarde que dificilmente esquecerei: falámos sobre a verdade no trabalho de qualquer criador de teatro. E na pertinência de se fazer teatro. Melhor, da dignidade de se fazer teatro.
O mês desemboca em Agosto, que começa com outra procura: chamámos-lhe “Os Caminhos do Actor”, e são duas propostas de metodologia para o actor conduzidas pelo Bernardo Souto – que já se ouviu nestas cartas – o José Pereira, que é ilusionista, e o Hugo Caiado, que é professor de ténis.
Pronto, apresentado Julho, vamos para a carta.

Não deve ser por acaso que a ideia de estar a caminhar me aparece tantas vezes. No outro dia, num podcast francês a que cheguei por engano, um podcast de autoajuda, ouvi uma voz feminina dissertar longamente sobre deambulação. Eu sei o que estão a pensar: afinal não foi um engano assim tão grande. A evolução do episódio tinha nuances que eu não vou citar. De qualquer forma, enquanto corria – que é quando ouço os podcasts – pensava sobre deambulação. E, enquanto ouvia a voz da rapariga, pensava na minha maneira de deambular.
Quando calço os ténis para ir correr, sei mais ou menos ao que vou. Tenho uma tarefa mais ou menos concreta, e executo-a. Mas muitas vezes saio de casa para caminhar. Nessas ocasiões, não sei aonde me dirijo. E é nessas ocasiões que mais facilmente consigo pensar. Já falámos nisso, aqui, mas há uns dias encontrei uma definição boa para este exercício.
Foi a ouvir uma masterclass do David Lynch.
O mestre, chamo-lhe assim porque era uma master-class, dizia que as ideias funcionam assim: tu estás junto a uma porta fechada. Do outro lado há uma pessoa com um puzzle montado. Essa pessoa vai desmontando o puzzle e passando as peças uma a uma (e espaçadamente) para o teu lado da porta. Tu apanhas uma peça, achas graça à forma, gostas das cores. Não sabes bem o que fazer com ela, mas guardas a peça. Depois, outra, e outra, e outra. São peças que parecem independentes entre si, mas pertencem todas ao mesmo puzzle. E, um dia, tu percebes. Ah, então esta é com esta, e esta ao lado desta, e isto é aquilo. Tudo se arruma na tua cabeça, e a pessoa do outro lado da porta passou-te o puzzle por inteiro.
A pessoa do outro lado da porta é como uma espécie de Ariadne, a dar-nos a solução do labirinto. O labirinto que a Sophia denuncia no conto. A pessoa do outro lado da porta a resolver o andar perdido com que a Sónia começou esta carta. A pessoa do outro lado da porta como entidade esclarecedora.
Agora, que nome tem essa pessoa?
Eu ando fascinado com dois italianos: por um lado Michelangelo (sim, o escultor e pintor renascentista), por outro, um tal de Michelangelo, também, mas Michelangelo Merisi, que ficou conhecido como Caravaggio.
Para eles, homens profundamente influenciados pelo cristianismo, talvez esta presença do outro lado da porta fosse Deus. Mas não me parece que Deus nos sirva, neste momento. Até porque acho que somos incapazes de uma relação com a divindade próxima da que tinham estes dois Michelangelos.
Então, que nome dar a esta presença?
Há uns tempos escrevi um texto em que acho que andava à procura do seu nome. Começava assim:
“Na sala onde estou sentado há um relógio de pêndulo: uma caixa de madeira escura com portas de vidro. No seu interior um mecanismo dourado onde mal se vêem os ponteiros. Sobre tudo isto, um cavalo esculpido em madeira.
Uma vez por semana é preciso dar corda ao relógio. Com uma chave, fazer tensão lá dentro. Se não o fizermos, um dia chegará em que o relógio pára. O tempo não parou, não deixou de passar, mas faltou a tensão na engrenagem do seu marcador. Esta tensão necessária não para a passagem do tempo, mas para o reconhecimento dessa passagem. E qualquer coisa viva que este reconhecimento carrega”
O texto continua. Tinha começado por citar uma fala de Macbeth Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow. Uma fala perfeita, um exemplo inspirador da escrita de Shakespeare, que termina assim:

Life’s but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

É uma fala sobre a insignificância da vida. A discrição do sofrimento. O ridículo de qualquer palavra ou pensamento.
“Um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada.”
É uma imagem desarmante. Muito anterior a Camus, que três séculos depois estava a escrever que o único problema filosófico era o suicídio – pois, se perdemos o sentido…
É uma fala pessimista, em última instância, a abrir um texto em que acho que ando à procura do nome da presença do outro lado da porta:
“A emergência do teatro é ser vela que ilumina coisa nenhuma, fogo que arde sem razão aparente. Não se baixaram as armas porque Genet tenha escrito “Os Biombos”, com “O Crime de Aldeia Velha”, Bernardo Santareno não conseguiu prevenir crimes provocados por ódio e incompreensão. Mas esta vela não se pode apagar. É preciso pegar na chave e provocar tensão no relógio. Replicar no relógio a tensão do mundo. É frustrante, grande parte do tempo esta sala está vazia. Mas agora, reparem, sentei-me aqui para escrever. Sou só eu. E valeu-me a tensão que alguém provocou no relógio para ler ao contrário a fala de Macbeth, e terminar, como quem repete o tiquetaque, com Amanhã, e amanhã, e amanhã.”
E, assim, é como se a presença do outro lado da porta fosse o próprio mundo. A tensão do mundo. Ou das tensões que o mundo tem, a que mais nos emociona neste momento.
Agora, estou a escrever um texto que havemos de estrear em Novembro, em Viseu. Chama-se “Invocação ao Meu Corpo”, como o livro do Vergílio Ferreira. Depois, passa por Lisboa, ainda em Novembro. O processo de escrita é exactamente o que David Lynch descreve. E a presença do outro lado da porta tem sido generosa: desde T. E. Lawrence, a Wade Davis, ou Jack Kerouac, as peças do puzzle são muito boas de ter como companhia. Mal posso esperar por ver o quadro que, juntas, desenham.
Mas esta é uma promessa para Novembro. É que, já dizia o outro, agora entra Agosto, e no projecto CRETA começamos com duas semanas de trabalho intenso com o Bernardo Souto, o Hugo Caiado e o José Pereira. São os Caminhos do Actor.
No dia 18 de Agosto, lemos “Farsa da Rua W.”, de Enda Walsh. A sessão é coordenada pela Gi da Conceição e já se podem inscrever no site. Podem participar ao vivo ou por Zoom, relembro.
No dia 22, lançamos o segundo episódio de “Já não estamos lá mas é como se nunca tivéssemos saído”, uma criação em três episódios da companhia Mochos no Telhado para “O Lugar de Onde se Ouve”.
E, finalmente, no dia 29, recebemos o Miguel Ramos e a Rosário Melo para falar sobre “O Princípio de um Espectáculo”. O Miguel e a Rosário pertencem à Confederação, uma companhia de teatro sedeada no Porto. E o trabalho deles é inspirador.

Antes de me despedir, no outro dia, uma amiga enviou-me uma canção. É uma canção que surge num contexto muito específico. Mas partilho-a mais porque é a expressão de desejo. Poderíamos dizer, como diz Tolentino de Mendonça, expressão de impossível. Portanto, desculpem, hoje não termino com a canção do costume, em vez disso, cá vai: La quête, de Jacques Brel – uma canção que começa por dizer: sonhar um sonho impossível, e termina com a frase: alcançar a estrela inacessível. No fundo, mais uma resposta à pergunta: qual o nome da pessoa que está do outro lado da porta?

Esta foi a décima quinta carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Décima Quarta Carta de CRETA

06/04/2020Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Aquela canção do Bob Dylan. Aquela que começa por nos perguntar “quantas estradas tem um homem de caminhar, até lhe podermos chamar homem” é uma grande canção.

Diz que a resposta está no vento. Claro. Como quem diz: anda por aí. Já existe, ninguém a vai inventar, só precisa de ser animada.

Como no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, do padre António Vieira: o homem é pó, e precisa de vento para se animar. Aquela coisa chamada força anímica. Emoção – que é uma palavra irmã da palavra movimento.

Mas “quantas estradas tem um homem de caminhar, até lhe podermos chamar homem” é a pergunta mais importante. Porque nela podemos ouvir: quantos quilómetros de frustração até que esse reconhecimento chegue? Até que o vento se levante? E, enquanto caminha, o que é que o homem que há de ser é?

Para mim é sempre esta a questão na arte. Já vos devo ter dito por aqui que um dos meus faróis é a canção do Blind Willie Johnson: what is the soul of a man (o que é a alma de um homem). Se não conhecem, aconselho. Mesmo. Desliguem isto, e vão ouvir. É uma canção eterna. Quando regressarem continuo, para vos dizer que esta questão “o que é a alma de um homem” parece-me dar sentido à arte, para quem procura encontrar nela algum sentido. Todos os objectos artísticos parecem a possibilidade de uma aproximação à resposta: seja porque sugerem o que pode ser a alma de um ser-humano (nestas ocasiões gostaria de ser inglês para dizer fellow humanbeing), seja porque são objectos reveladores do seu criador. E, por seu intermédio, de nós mesmos.

Ou seja, para quem queira, o objecto artístico pode contribuir para responder à pergunta que Blind Willie Johnson nos coloca, e à interrogação de Bob Dylan também.

A verdade é que muitas vezes ouço o eco desta pergunta nos criadores que mais admiro. Não tanto porque queiram saber a essência do ser humano, mas porque se tentam encontrar na definição de ser humano. Talvez Blind Willie Johnson tenha perguntado o que é a alma de um homem porque não se sentiu um homem em algum momento.

No “Lamento de Ĉiela”, que estreámos no ano passado, o Pierrot no espectáculo queixava-se disso mesmo. E assistimos a tantos exemplos de desumanidade que por vezes nos pode passar pela cabeça, com legitimidade, o que Flávio Migliaccio, actor brasileiro, escreveu na sua carta de suicídio há não muito tempo: a humanidade não deu certo.

Eu sei: a carta que vos dirijo este mês não parece muito optimista. Mas é que vai manchada pelo momento que atravessamos. E porque, em resposta ao momento, sinto que é agora que a pergunta é mais importante. O que é a alma de um homem?

Seja num livro que nos desvenda numa personagem, ou numa canção que se canta quando a equipa entra no estádio. Por exemplo, quando o Liverpool entra no relvado, ouvimos “You’ll Never Walk Alone”. É uma canção que tem a sua origem numa peça de teatro, curiosamente. A peça de teatro “Liliom”, do húngaro Molnár, deu origem ao musical “Carousel”, da dupla Rodgers e Hammerstein, de onde a música foi pescada por uma série de cantores de diferentes gerações e estilos, até que Gerry & the Pacemakers pegaram na canção e uma série de clubes de futebol se fundaram nela para ganhar alento. Um vento que se levanta.

Acho que é uma mensagem que podíamos deixar ao senhor Dylan. Porque nos encontramos tantas vezes, tanto tempo, nas estradas que nos conduzem à humanidade, que é bom lembrar que a caminhada se faz mais facilmente em companhia. Que não estamos sozinhos. Que outros como nós se se perguntaram: o que é a alma de um homem. Que essa dúvida nos aproxima, e que o vento que contém a resposta, bom, o vento é a arte que o põe em movimento – posto por outras palavras, é a arte que o emociona.

No fundo, é sobre isto que vamos falar com a Cátia Terrinca, na visita que nos faz no dia 13 de Junho. Será a primeira vez que falamos sobre “O PRINCÍPIO DE UM ESPECTÁCULO” este ano. Será na Casa do Miradouro, com lotação muito limitada. Podem inscrever-se no nosso site, e o meu conselho é que sejam tipo o Speedy González.

A importância da arte na vida de uma pessoa é o tema explorado no novo “LUGAR DE ONDE SE OUVE”. É um texto escrito por mim, belíssimamente interpretado pela Nídia Roque (a sério, comovo-me e redescubro o texto através da interpretação da Nídia) e lindamente sonorizado pelo Sérgio Delgado (ainda acreditam em mim? É que estou a falar a sério.). Nele, uma mulher ouve um misterioso violinista no meio da noite, nos claustros da Sé de Viseu. A consequência deste encontro… Bom, terão de esperar por dia 27 para ouvir.

Sinto que falámos muito de resiliência e limite nesta carta. E o Bernardo Souto vem a Viseu fazer pesquisa durante duas semanas: uma com o Zé Mágico, outra com o Hugo Caiado, que é professor de ténis. Será o momento de pesquisa para um algo de que falaremos no próximo mês. É que o Bernardo, o Zé e o Hugo nos vão dar a conhecer os pontos de contacto entre o teatro, o ilusionismo e o ténis. Um exercício sobre os limites e a resiliência de um actor.

Quis deixar para o fim o princípio do mês. É já no dia 9 que lemos “Orfeu da Conceição” de Vinícius de Moraes, no CLUBE DE LEITURA DE PEÇAS DE TEATRO. As inscrições estão abertas no nosso site: podem marcar presença física ou digitalmente. A sessão vai acontecer nos claustros da Sé. Estou muito ansioso, porque é uma peça cheia de música e um cenário de luxo. O texto é uma adaptação do mito de Orfeu e Eurídice para o contexto de uma favela no Rio de Janeiro.

Falámos muito do papel da arte na vida de uma pessoa. E Orfeu é o poeta por excelência. A certa altura na peça, Eurídice deixa-o só, e Orfeu diz a fala mais bonita que já se ouviu em português, na minha opinião. Não resisto: vou ler a fala para me despedir. Mas deixo-vos um aviso prévio: não será isto que vos vou ler uma porta escancarada para a resposta à pergunta o que é a alma de um homem?

Eurídice atira-lhe um beijo e sai. [Orfeu, sozinho, diz]
Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada…
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto — que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu, tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem —, nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice…
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres — que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai, tua vida, pássaro contente
Vai, tua vida, que estarei contigo!”

Esta foi a décima quarta carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Décima Terceira Carta de CRETA

05/05/2020Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Por estes lados, não é raro ver da estrada os montes como se fossem ondas do mar. E, em dias de inverno, entre os montes há nevoeiro. Se tiver de evocar uma imagem para ilustrar a memória é esta que escolho: uma paisagem de nevoeiro, onde vemos os cumes de montes, e uma ou outra clareira rápida.

No outro dia dei por mim a pensar na Sé de Viseu. Estava a tentar lembrar-me de um pormenor: de um canto dos claustros, eu vejo uma das torres da catedral. Não sei por que razão, esta é uma das imagens mais presentes da minha memória. Ocorre-me frequentemente sem que me esforce. E sempre que estou pela zona, vou a esse canto confirmar a imagem que dele tenho. É que não sei dizer quantas vezes uma memória não foi imaginação.

Neste momento, algures no Universo há duas sondas chamadas Voyager. Foram lançadas no final dos anos setenta, e estão cada vez mais afastadas do planeta terra. Cada uma delas leva consigo um disco de ouro com músicas, sons do planeta, saudações em várias línguas, alguns exemplos básicos de aritmética, há o som de um bebé a chorar e uma mãe que diz num inglês americano: oh come on now, be a good boy.

Por enquanto, estas sondas são instrumentos de exploração científica. Mas um dia há de chegar em que os seus geradores não vão ser capazes de alimentar o sistema. Nesse dia, estas sondas passam a ser caixas do tempo: uma memória do planeta terra a vaguear pelo universo. E, se um dia forem encontradas, se aqueles que as encontrarem conseguirem ouvir o disco de ouro, não poderão senão imaginar o que seria este planeta: a forma do bebé e da mãe que ouvem; ou quem seriam estas pessoas que falam em nome da humanidade inteira; será que quando ouvirem “Dark Was The Night”, sentem a solidão que é missão da música no disco ilustrar?

Em Maio de 2020, é como se descobríssemos uma das sondas Voyager, e ouvíssemos o disco dourado.

E eu dou por mim a fazer percursos de memória nas duas cidades que melhor conheço: Lisboa e Viseu. Faço o exercício de imaginar qual será o caminho mais rápido entre o ponto A e o ponto B. E imagino mesmo o que é caminhar esse trajecto.

Salto pormenores, inevitavelmente, e misturo dias diferentes no mesmo caminho.

A mesma rua tem dias diferentes quando a atravesso na memória.

Peter Handke, numa das minhas leituras deste período de isolamento, diz-me que toda a formulação, mesmo a formulação de coisas que aconteceram realmente, é mais ou menos uma ficção. Será menos se nos contentarmos com o lembrar vagamente um acontecimento; mais, se tentarmos ir ao pormenor.

Em Maio de 2020 tínhamos previsto começar o projecto CRETA. Mas, mesmo que comecemos a reconquistar, cuidadosamente, as ruas que agora só imaginamos, nós não podíamos ousar convidar-vos para um encontro.

Por isso, pensámos numa alternativa:

Primeiro, propomos o exercício que acabo de descrever, como se ouvíssemos o disco dourado: um exercício de imaginação para lugares concretos, que sabemos que existem, talvez já lá tenhamos estado, e que podemos mais tarde visitar: para isso convidámos a companhia Mochos no Telhado e o João Cachola para escreverem dois episódios de um novo podcast. Chama-se “O Lugar de Onde se Ouve”, para compensar a nossa ausência do “lugar de onde se vê” que é o Teatro. O primeiro episódio é lançado no dia 16, o segundo no dia 23 de Maio.

Mas antes disto, propomos retomar o clube de leitura de peças de teatro. E no dia 12, às 21h, temos encontro marcado para ler textos de Karl Valentin. Não será no estúdio da Inês Flor, mas numa etérea sala online na aplicação Zoom. Valentin é uma referência inevitável no teatro cómico e cabaret. Entre os vários textos que vamos ler há um que se chama “Porque Estão os Teatros Vazios” – o título é oportuno, o conteúdo é eterno. Podem inscrever-se para esta sessão do clube (independentemente de onde estejam) no site do CRETA.

Este mês, portanto, exercitamos a memória e a imaginação, e temos estas interrogações: como é a cidade de que se lembram? E, qual é a maneira mais rápida de ir, a pé, do Rossio à Igreja da Misericórdia, em Viseu; ou do Chiado a Campo de Ourique, em Lisboa?

Esta foi a décima terceira carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Décima Segunda Carta de CRETA

04/09/2020Newsletter

Esta carta foi escrita para ser gravada. Tentamos simular a experiência por escrito, mas aconselhamos a que ouçam!

(Ouvimos os sinos da igreja tocar uma hora; depois, o canto dos pássaros.)

A passagem do tempo é uma coisa diferente para cada um de nós, não é novidade. E, às vezes, parece difícil entender exactamente a dimensão das coisas no tempo. Na sua Poética, uma das distinções que Aristóteles estabelece entre a Tragédia e a Epopeia é o seu alcance na narração de acontecimentos: uma dura, por assim dizer, mais tempo que a outra. Em Sociedades Primitivas, primeiros apontamentos do que mais tarde chamaríamos teatro serviam como rituais de passagem entre estações do ano. No século XX, Beckett coloca em cena precisamente aquilo que poderíamos entender como um desperdício de tempo, personagens à espera. Não sabemos dizer o que é o tempo, muito menos acordar no que se deve fazer com ele; uma coisa, ainda assim, é inegável: ele passa.

Como nos diz aquele soneto do David Mourão-Ferreira que fala da experiência do tempo:

“E por vezes as noites duram meses / E por vezes os meses oceanos”…

Nesta carta, eu gostava de pensar sobre isto. É que há uns tempos, o Bernardo Souto, que é meu amigo e colega no Teatro da Cidade, falou-me de um conceito que recuperou: uma coisa chamada o calendário cósmico.

(som de chamada)

Bernardo – Gooooood Morning Vietnam!!

(começa música)

Este aqui é o Bernardo. Imagino que já possam adivinhar que é entusiasmante ouvi-lo falar sobre aquilo que o apaixona. Mesmo quando se engana…

Bernardo – … Os últimos raios de sol, aqui no Cacém. Raios que demoraram 13 minutos a percorrer 150 milhões de quilómetros.

Guilherme – Incrível. Não foram 8?

Bernardo – 8?

Guilherme – Não foram 8 minutos?

Bernardo – 8 minutos, sim.

Guilherme – E não 13.

Bernardo – Não, isso fui eu que já estava a baralhar as coisas.

Eu sou o Guilherme Gomes, esta é a décima segunda carta de Creta. E hoje, claro, vamos falar da passagem do tempo. Porquê? Conto mais adiante. Por enquanto, vou querer saber porque é que o Bernardo se lembrou do calendário cósmico.

(fim da música)

Bernardo – Então, eu estou aqui a pensar. Estou aqui parado. E imaginava: se eu fosse cientista e não tivesse nada à minha disposição, sem ser uns livros e alguma internet, e o meu trabalho fosse mesmo estar aqui fechado e pensar sobre alguma coisa que possa mudar a mente de todos os seres humanos… Eu começo a pensar pelo princípio. E o princípio é a origem de quem é que eu sou e de onde venho. E eu quero responder a estas perguntas. E comecei a questionar isto e lembrei-me que já tinha dado isto no sexto ano. Entretanto, fui falar com a minha professora, passados 13 anos, a minha professora de ciências, e ela aconselhou-me a ver a série do Carl Sagan, uma série produzida em 1984, e a ver, sobretudo, o calendário cósmico. Nesse calendário mostra: desde o início do Big Bang até aos nosso dias, ou seja, até ao aparecimento do Homem. O nosso aparecimento… acontece, precisamente… em Dezembro, nos últimos cinco segundos.

(Começa a música.)

O Bernardo entusiasma-se a falar desta descoberta. E eu pergunto-lhe o que é que mais o comove, no meio disto tudo. O que é que o calendário cósmico ensina, e ele diz-me que

Bernardo – A memória… É a única coisa que o ser humano leva consigo até à morte, são memórias.

A memória…

E eu lembro-me de uma noite, ainda criança, no Alentejo, deitado num parque infantil, com o meu pai, a minha mãe e o meu irmão. Era de noite, e o céu enorme. E nós, deitados na relva de barriga para cima, com uma boa parte do universo à nossa frente.

Anos mais tarde havia de aprender que naquela noite estávamos a olhar para o passado.

Que aquilo que o Bernardo disse, sobre os oito minutos que a luz do sol demora a chegar até nós, aplica-se a tudo o que está ali em cima. Estávamos a olhar para pontos brilhantes tal como eram há milhões de anos.

Um desencontro no tempo.

Um desencontro que Italo Calvino tornou muitíssimo interessante numa obra chamada “Todas as Cosmicómicas”. O meu exemplo preferido é o de um conto chamado “Anos-Luz”, em que o narrador nos conta que um dia, ao observar o céu com o seu telescópio, como era seu costume, vê, numa galáxia a cem milhões de anos-luz de distância um cartaz com as palavras: EU VI-TE. Ele sabia que a imagem daquele cartaz tinha demorado cem milhões de anos a chegar até ele, e que aquilo que a pessoa que fez o cartaz viu demorou cem milhões de anos a chegar até ela, portanto o narrador teria de recuar duzentos milhões de anos para perceber o que a pessoa do cartaz tinha visto. E ele lembrou-se. Há exactamente duzentos milhões de anos, nem um dia mais, nem um dia menos, tinha de facto acontecido uma coisa que ele tinha tentado esconder. O conto continua para nos mostrar os mecanismos do narrador para um (podem imaginar que demorado) esclarecimento.

Este conto sempre me fez pensar que um gesto discreto, é um gesto ainda assim. A sorte que o narrador teve em que alguém escolhesse, no meio da vasta paisagem que é o céu nocturo, olhar para ele – ainda por cima no momento em que ele faz precisamente o que não queria que ninguém visse.

Nada em que o calendário cósmico não tenha feito o Bernardo pensar

Bernardo – Nós andamos para a frente sem olhar para trás… Nós caminhamos sem saber o que somos. E, como Carl Sagan dizia (e eu faço disto outra frase), ele dizia que nós precisamos de conhecer os outros planetas para conhecermos melhor o nosso. E eu acho que nós precisamos de conhecer melhor as outras pessoas, melhor o ser humano para nos conhecermos melhor a nós próprios.

A descoberta do Bernardo é a revelação de tanto passado. Chegamos ao universo nos últimos segundos de um ano. Já se passou tanto antes da nossa chegada, infinitamente mais do que aquilo que a humanidade experimentou até agora.

Somos tanto e tão pouco ao mesmo tempo.

Num dos ensaios do Hamlet, no Teatro da Cornucópia, estávamos a tentar compreender as intenções das personagens mais jovens, e alguém se virou para os mais jovens do elenco e disse “Vocês é que podem falar disto, ainda são novos.” Mas o José Manuel Mendes, um dos veteranos da companhia, pessoa de uma inteligência com que eu raramente me cruzei, diz: “Não, eles não conseguem. Ainda não têm distância.”

Talvez a memória do Passado nos permita a distância que a experiência do Presenta não facilita. E talvez esta distância seja boa companheira da reflexão.

Na Alemanha do século XVI, em colégios de jesuítas, o teatro começava a ser usado como ferramenta didática. Este percurso há de culminar na Alemanha do século XX, na proposta de Bertold Brecht de um teatro baseado no distanciamento, para que precisamente se tornasse um contributo para a reflexão.

O distanciamento pode ajudar a pensar.

E a memória, portanto. O saber o que nos antecede pode salvar-nos dos perigos que a soma do poder com a ignorância carrega.

O Bernardo recuou treze anos para se lembrar do calendário.

E Carl Sagan, procurando construir o presente e a possibilidade do futuro, passou a vida a estudar os astros e as estrelas; passou a vida, parece-me, a estudar o passado.

O calendário cósmico dá-nos mais a noção do passado que do futuro. E parece-me, à boa maneira de Aristóteles, não um exemplo de tragédia, mas uma impressionante epopeia.

Mas porque é que estamos a falar de tempo e memória nesta carta?

 (Som de chamada.)

Ana – Estou?

Guilherme –  Alô, Ana? Estou a gravar a décima segunda carta de CRETA. Temos feito uma por mês, quer dizer que este é o 12º mês. Ou seja, o primeiro ano. Passou um ano desde que começámos a dar notícias de CRETA. E eu lembrei-me de um poema; que comecei a pensar que seria sobre a passagem do tempo, mas percebo agora que pode ser sobre a memória. É do David Mourão-Ferreira. Olha só:

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos  E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites   não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

Esta foi a décima segunda carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm dos sites bensound.com e de incompetech.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Décima Primeira Carta de CRETA

03/25/2020Newsletter

No verão de 2016, numa tarde que já não consigo precisar, eu conduzia a mota em direcção a norte, na Estrada Nacional número 2. Estava a caminho de Chaves, cidade onde ia pernoitar. O dia estava limpo, um dia de sol. Era, afinal, o pico do verão. E ao longe, ali em frente, por cima de Chaves, imagino, começo a ver, branca e elevada, aquela que ainda hoje considero a nuvem mais bonita que alguma vez vi. A nuvem parecia quase sólida, uma gruta flutuante, tão grande e tão densa que se fazia sombra a si mesma.

Encostei a mota, fotografei a nuvem, e continuei o caminho.

Incapaz de ignorar a presença dela, à medida que eu avançava, mais da nuvem conhecia.

E, à medida da sua revelação, o encanto que sentia pela sua beleza começou a transformar-se em receio.

É que aquela nuvem se diluía num céu cinzento. Um tecto negro. E, sobre a cidade de Chaves, eu conseguia distinguir uma cortina de chuva.

Ali estava eu, rapaz no início dos vintes, a conduzir uma mota em direcção a uma tempestade.

De novo, encostei na berma da estrada. Desta vez, não tirei nenhuma fotografia, não queria tirar nenhuma fotografia. Tinha medo, simplesmente. Da mochila tirei um impermeável. No meio da chuva, lá ao fundo, como que ligando por breves instantes a nuvem à terra, eu consegui ver relâmpagos.

Nesta circunstância, inevitavelmente humilde, apertei o impermeável e continuei o caminho.

Começo por contar esta história, por ser uma em que me confrontei com o medo. E, ao confrontar com o medo, confrontei-me com uma imagem um pouco mais clara do que sou, ora, ao ler Simone Weil aprendi que no teatro grego havia esta ideia de que o sofrimento era indispensável para conseguir conhecimento. Bom, para mim, o conhecimento da minha vulnerabilidade, naquele momento, era gritante, e o meu sofrimento era uma nuvem. Aquela nuvem enorme, a sua beleza inédita.

Também agora me sinto esse rapaz nos vintes, na berma da estrada, a olhar para a tempestade.

No outro dia, ao ler a introdução a uma edição de poemas narrativos de William Shakespeare, aprendi que ele os escreveu durante uma quarentena. Entre meados de 1592 e início de 1594, os teatros de Londres fecharam por causa de uma praga. Shakespeare usou esse tempo para escrever “Vénus e Adónis”, o “Rapto de Lucrécia”, e outros longos poemas narrativos. Ele descreve a escrita destes poemas como um exercício que serve para “fazer algo desta hora vazia”, e “manter o lobo afastado da porta”.

Eu li isto, e pensei em nós. Pensei no ano de 2020. Neste momento de distanciamento social, e, num movimento optimista, pensei: como fazer algo desta hora vazia?

Sempre me pareceu que o teatro se faz de coisas indirectas. Desde que comecei a trabalhar, comecei a perceber que o teatro era mais sobre estar com as outras pessoas do que dizer coisas a outras pessoas; tenho a impressão de que esse estar com as outras pessoas, e a forma como estamos com elas, é que diz alguma coisa. Eu não digo que amo ou odeio alguém: mostro-o; passo por isso; e é a qualidade de um olhar que fala por mim, ou algum gesto discreto, um tom; no fundo, uma subtileza.

Se alguma coisa este distanciamento social nos pode ensinar, que seja sobre o seu oposto: a descoberta real do outro. A curiosidade, não só pelas suas ideias, mas pelas subtilezas que fazem as entrelinhas de um diálogo: a maneira como alguém faz determinados gestos, a forma como fala, como soa a sua voz, a forma como escuta, a posição que ocupa para o fazer; para onde olha quando falamos frente-a-frente?

E, de certa maneira, este momento pode provocar-nos a descoberta de qualquer coisa profundamente teatral: talvez tudo isto nos ensine a contracenar com a vida – expressão que roubo ao Luis Miguel Cintra.

Mas seja esta ou outra a descoberta deste momento, o importante é seguir o segundo conselho de Shakespeare: manter o lobo afastado da porta. Porque agora, estamos ainda na Estrada Nacional número 2. Já descobrimos o céu cinzento, intimidante. Tomamos as devidas precauções. Vestimos o impermeável, conduzimos um pouco mais devagar, pelo menos não temos pressa de chegar ao inevitável destino. Mas avançamos, confiantes. Estamos na Estrada Nacional número 2, e talvez agora, como aconteceu no verão de 2016, à nossa chegada, a tempestade já tenha passado.

Décima Carta de CRETA

02/12/2020Newsletter

Qualquer pessoa que se tenha sentado algum dia em frente a uma folha em branco com a missão de escrever alguma coisa sabe o que é isto de medir as palavras. As voltas que um texto dá para se fazer uma frase. A dificuldade de saber como colocar o que pensamos nas palavras certas.
Um dia, num artigo chamado “A Evolução do Pensamento”, dei com a ideia do professor Vladimir Dmitrievich Shadrikov, investigador e académico russo, de que a tradução do pensamento em palavras é um exercício criativo. De que transmitir um pensamento é parecido com descrever um lugar. É preciso como que inventar as palavras. E que ao pensamento que vem antes de haver palavras que o traduzam podemos chamar protopensamento.
Quando uma ideia é muito clara, mas não sabemos como a transmitir, bom, estamos na zona do protopensamento, segundo o professor Shadrikov.
De certa maneira, parece-me que é a esta procura que assistimos num solilóquio. Medir as palavras – uma ideia cara, esta. Dar às palavras uma medida, um peso, um valor. Reconhecer o seu poder.
Um solilóquio tem esta força. Senão vejamos: proponho-vos um exercício de imaginação:

(Som de ondas.)

Estamos a olhar do alto para uma costa rochosa, como se estivéssemos num precipício. Não há muita definição, a imagem divide-se em dois círculos luminosos, intermitentes; e as ondas a avançar sem piedade contra as rochas negras estão desfocadas.
Depois, vemos um par de olhos. Eles é que olham para a costa, eles é que vêem as ondas lá em baixo.  Eles é que estão neste precipício.
A imagem das ondas foge-nos.
E, então, uma interrogação…
“…To be or not to be, that is the question…” (“Ser ou não ser, é isso a questão”)
Agora sim. A imagem torna-se clara, vemos uma pedra grande, na praia de pedra escura. Vemos uma onda como que abraçando a pedra. Depois, vemos um homem debruçado sobre um parapeito. Loiro, em pose, um anel em cada mão, as mangas da camisa largas, tem um punhal embainhado à cintura.

Está a três quartos, foca o olhar em lugar incerto.
Parece estar só.
“… And by a sleep to say we end |The heart-ache and the thousand natural shocks |That flesh is heir to: ‘tis a consummation |Devoutly to be wish’d. To die, to sleep;…”
Estamos a olhar para Laurence Olivier, a ouvi-lo dizer o famoso monólogo de Hamlet, sobre ser ou não ser. Vê-lo nesta circunstância torna claro o que se passa com a personagem. Ao perguntar “ser ou não ser”, Hamlet está a pesar o seu suicídio.
E em determinado momento, ele desembainha o punhal.
Quando o faz, Hamlet fecha os olhos, fecha a boca. O monólogo continua como se ouvíssemos o seu pensamento. A cena cresce, com o nosso olhar cada vez mais próximo da cara do príncipe, com a argumentação que faz cada vez mais determinante para o gesto derradeiro.

Mas heis que uma ideia…
“… perchance to dream…”

Afastamo-nos, os olhos abrem-se. Hamlet está deitado no parapeito. O punhal na mão.
O tom do discurso muda. Deixou de fazer sentido, a morte. E nós temos a sensação de que ele percebe que não é esta a solução para a sua tragédia.
Hamlet assume uma postura hirta, aparentemente racional, céptica, desiludida. E, sem grande entusiasmo, ele afasta-se do precipício.
“… And enterprises of great pitch and moment |With this regard their currents turn awry |And lose the name of action.”

 Esta é a descrição de um excerto do filme “Hamlet”, dirigido e protagonizado por Laurence Olivier em 1948 a partir do texto com o mesmo nome, escrito por William Shakespeare em 1600.
Solilóquio é uma palavra estranha, mas facilmente se desmistifica. No fundo serve para nomear um texto em que a personagem fala sozinha.
Como eu, agora. Se, por um acaso, dessem comigo a fazer esta gravação, o que veriam era um rapaz sozinho numa sala, com auriculares nos ouvidos, muito concentrado a ler para um microfone.
Mas há uma coisa bonita (e útil) num solilóquio: assistimos a alguém que diz em voz alta uma série de argumentos sobre algo por que está a passar; ou sobre alguma coisa que está a sentir; ou uma ideia que tem.
Em todos os casos, parece-me que um solilóquio é o sintoma de um pensamento. E isto entusiasma-me porque me parece uma espécie de ensaio para o diálogo ou para a acção. Como se assistíssemos ao momento do estratega que prepara uma batalha, ou faz o balanço de uma derrota ou de uma vitória.
Quando penso em solilóquios, é o nome de Shakespeare que me vem à cabeça. Assistimos a tantos momentos destes nas suas peças. Momentos de intimidade entre a personagem e o público.
Ouvimos este que é, provavelmente, o solilóquio mais conhecido da história do Teatro, mas propunha ler-vos a primeira fala da peça Ricardo III, um outro solilóquio, numa tradução feita por Eduarda Dionísio, Maria Adélia Silva Melo e Luis Miguel Cintra, editada pela Difel.

Ouve-se o livro ser folheado.
Lê primeira fala de “Ricardo III”.  

O solilóquio com que Ricardo abre a peça é o exemplo perfeito do caminho, e da exposição, de um pensamento.
Este homem é um estratega, e sabemo-lo porque o vemos medir os seus planos. E ao mesmo tempo, podemos adivinhar a sua tragédia, a marca que o define, a sua deformidade, a rejeição de que é alvo – os cães que ladram quando passa…
Parece-me que este solilóquio sustenta a contenção nos diálogos que se seguem. As palavras saem medidas porque houve este momento.
Começar uma peça com o balanço das intenções do protagonista feito pelo próprio, parece-me engenhoso. Entramos como que no meio da festa. E convidados pelo protagonista. Como com Hamlet, somos cúmplices, já, das suas intenções.
A partir de agora, podem falar por meias palavras, porque fizeram de nós bons entendedores.

Pela minha parte, normalmente é a caminhar que me ponho em solilóquios. É quando arrumo ideias, refaço discussões, planeio uma argumentação, vislumbro a maneira de traduzir por palavras os pensamentos.
Caminhar ajuda-me a pensar.
Os meus solilóquios na vida real, nunca acontecem num precipício, ou na soleira de uma porta, ou na sombra de uma esquina. Acontecem, muito banalmente, enquanto caminho Avenida Almirante Reis abaixo, ou quando estou a caminho do metro – medindo as palavras à luz clara da manhã…

Eu sou o Guilherme Gomes, e esta foi a décima carta de CRETA. Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
As músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.

Nona Carta de CRETA

12/31/2019Newsletter

Olá,

Escrevo de pé, em frente a uma porta fechada. Porque, em princípio, para todos os labirintos há um fim. Afinal, cada labirinto é um enigma, um problema que se coloca, e a chave da sua resolução alguém a guarda, ou em algum momento se encontra. No caminho que percorremos, neste labirinto de CRETA, chegámos aqui: uma porta, o fim de um percurso. Enfim solucionado, podemos pensar sobre o caminho que escolhemos fazer.

2019 foi um ano transformador. Desde que CRETA apareceu, em Maio, aprendi um mundo de coisas novas. Vocês mo ensinaram. E, se alguma coisa posso dizer, eu agradeço.

Agradeço à Ana Seia de Matos, ao Luís Belo, ao Luis Miguel Cintra, à Carla Galvão, ao João Reixa, à Bruna Maia de Moura, à Nídia Roque, ao Rui Seabra, ao L Filipe dos Santos, ao Rui Pêva, à Sílvia Duarte, à Sofia Moura, ao Dennis Xavier, à Rosana Baena, à Guida Rolo, ao Roberto Terra, à Mariana Pereira, à Rosário Pinheiro, ao Gonçalo Alegre, à Sónia Sobral, ao Jorge Fraga, ao André Teixeira, ao Francisco Poppe, à Gabriela Coutinho, a Loff Olufson, ao Rafael Lopes, à Rita Camões, à Vanessa Parauta, ao Bruno Bravo, à Ana Alves, à Rosa Cotinha, e à Rita Cabaço por terem participado na programação de CRETA de forma mais ou menos directa, contribuindo para que o projecto fosse o que foi.

Também às instituições que se associaram a CRETA, deixo o meu agradecimento. Nomeadamente o Município de Viseu, cujo apoio atribuído através do programa Viseu Cultura, e da mediação de contactos com os Museus Municipais, foi fundamental para que CRETA existisse.

E a todos os que se juntaram a nós, na construção deste percurso, obrigado.

Chegados aqui, penso neste movimento de construção a tantas mãos. Que coisa extraordinária, olhar por cima do ombro, ver que para trás o caminho ficou iluminado; olhar para o chão e reparar que ao lado da marca dos meus passos encontro a marca dos vossos.

Mas chegámos a uma porta. Como no Teatro, porque estamos num labirinto, esta pode ser uma porta falsa; perceberemos então, que o caminho valeu pelo caminho, que a consequência deste percurso é a marca que deixamos no chão, e o corredor iluminado. Estendo a mão para a porta, confortado pela ideia de que, se a porta for falsa, pelo menos o caminho até aqui chegar foi de uma grande riqueza. Faço rodar a engrenagem da fechadura, a porta cede, do outro lado um corredor ainda. Talvez seja este o segredo de CRETA, aquele em que Dédalo se enredou, a cada promessa de solução, um novo caminho por percorrer.

Em 2020 continuaremos a caminhada que em 2019 começámos. Optei por dedicar o próximo ano a pensar sobre a passagem do Tempo através da programação de CRETA. E sei que no tempo de um ano estaremos de novo em frente a uma porta, com a incerteza ainda do que para lá da porta estará. Nesse momento olharemos sobre o ombro, outra vez, e vamos poder ver com amizade o que agora ainda é futuro. Haverá, no final de contas, melhor presente?

Atrevo-me a desejar a todos os que estão a ler estas palavras, votos de um novo ano repleto de inquietação. Acima de tudo, inquietação. Uma nova década inquieta. E que essa inquietação nos convoque o pensamento.

Retomamos as actividades de CRETA em Maio de 2020.
Até lá, vamos dando notícias.
Um abraço, e até já!
Guilherme

Oitava Carta de CRETA

12/02/2019Newsletter

Estendo a mão e já os meus dedos ultrapassam a fronteira. Sendo esta uma das últimas cartas de CRETA, chegando nós ao fim do ano, e, com isso, ao fim de CRETA, talvez se espere que apresente alguns números: qual o alcance do projecto, quais as actividades que fizemos, que retiramos de tudo isto. Mas, francamente, acho mais importante falar de fronteira. E parte porque Dezembro é a fronteira entre este e o próximo ano, e porque em Dezembro as fronteiras alimentam o que em CRETA se passa.

Portanto, retomo: estendo a mão e já os meus dedos ultrapassam a fronteira. Estou no meio de uma estrada, a ponta dos meus dedos em Espanha, meu corpo inteiro em Portugal. O mesmo sol ilumina este lado e aquele. Nada nos meus dedos indica que estão em lugares diferentes. Ainda assim, partindo meu corpo, uma fronteira. E, para além de necessidades administrativas, pergunto: o que faz uma fronteira? Porque existe uma fronteira? Mesmo as fronteiras do corpo, onde começo? Onde termino? Ou serei do tamanho do que vejo, ao jeito de Pessoa?

Pergunto isto porque sei que, logo no início de Dezembro, nos dias 6 e 7, uma migrante chamada Ĉiela, há de morrer numa fronteira. Podemos vê-lo no espectáculo lamento de ĉiela, que escrevi e encenei. A interpretação é de Carla Galvão e de Bruna Maia de Moura. Não posso deixar de pensar que em algum momento Ĉiela tem de fugir precisamente por haver fronteira, e que Ĉiela morre precisamente porque há fronteira. E que no teatro, como o poderão sentir na Igreja Madre Rita, há fronteiras, limites evidentes.

E é na fronteira de si mesmas que Sofia Moura e Rosana Martínez Baena fazem Península, no final de Dezembro. Um espectáculo criado a partir da sua condição de vizinhas peninsulares. Imagino que também elas perguntem o que as distingue, se o mesmo sol as ilumina. Curiosa reflexão, esta, em que duas pessoas vêem a fronteira que as separa diluída por uma outra. Afinal, muito líquido é este conceito. E talvez seja como diz a canção: é mais o que nos une que aquilo que nos separa. Península será a primeira produção da companhia Mochos no Telhado. Algum dia assistiram ao nascimento de uma Companhia de Teatro?

Da fronteira levanto o braço, aceno-vos com amizade. Aqui estamos, por aqui andámos, esperamos, do outro lado da fronteira, continuar a construir este projecto.

Até breve.
Um abraço,
Guilherme