No verão de 2016, numa tarde que já não consigo precisar, eu conduzia a mota em direcção a norte, na Estrada Nacional número 2. Estava a caminho de Chaves, cidade onde ia pernoitar. O dia estava limpo, um dia de sol. Era, afinal, o pico do verão. E ao longe, ali em frente, por cima de Chaves, imagino, começo a ver, branca e elevada, aquela que ainda hoje considero a nuvem mais bonita que alguma vez vi. A nuvem parecia quase sólida, uma gruta flutuante, tão grande e tão densa que se fazia sombra a si mesma.
Encostei a mota, fotografei a nuvem, e continuei o caminho.
Incapaz de ignorar a presença dela, à medida que eu avançava, mais da nuvem conhecia.
E, à medida da sua revelação, o encanto que sentia pela sua beleza começou a transformar-se em receio.
É que aquela nuvem se diluía num céu cinzento. Um tecto negro. E, sobre a cidade de Chaves, eu conseguia distinguir uma cortina de chuva.
Ali estava eu, rapaz no início dos vintes, a conduzir uma mota em direcção a uma tempestade.
De novo, encostei na berma da estrada. Desta vez, não tirei nenhuma fotografia, não queria tirar nenhuma fotografia. Tinha medo, simplesmente. Da mochila tirei um impermeável. No meio da chuva, lá ao fundo, como que ligando por breves instantes a nuvem à terra, eu consegui ver relâmpagos.
Nesta circunstância, inevitavelmente humilde, apertei o impermeável e continuei o caminho.
Começo por contar esta história, por ser uma em que me confrontei com o medo. E, ao confrontar com o medo, confrontei-me com uma imagem um pouco mais clara do que sou, ora, ao ler Simone Weil aprendi que no teatro grego havia esta ideia de que o sofrimento era indispensável para conseguir conhecimento. Bom, para mim, o conhecimento da minha vulnerabilidade, naquele momento, era gritante, e o meu sofrimento era uma nuvem. Aquela nuvem enorme, a sua beleza inédita.
Também agora me sinto esse rapaz nos vintes, na berma da estrada, a olhar para a tempestade.
No outro dia, ao ler a introdução a uma edição de poemas narrativos de William Shakespeare, aprendi que ele os escreveu durante uma quarentena. Entre meados de 1592 e início de 1594, os teatros de Londres fecharam por causa de uma praga. Shakespeare usou esse tempo para escrever “Vénus e Adónis”, o “Rapto de Lucrécia”, e outros longos poemas narrativos. Ele descreve a escrita destes poemas como um exercício que serve para “fazer algo desta hora vazia”, e “manter o lobo afastado da porta”.
Eu li isto, e pensei em nós. Pensei no ano de 2020. Neste momento de distanciamento social, e, num movimento optimista, pensei: como fazer algo desta hora vazia?
Sempre me pareceu que o teatro se faz de coisas indirectas. Desde que comecei a trabalhar, comecei a perceber que o teatro era mais sobre estar com as outras pessoas do que dizer coisas a outras pessoas; tenho a impressão de que esse estar com as outras pessoas, e a forma como estamos com elas, é que diz alguma coisa. Eu não digo que amo ou odeio alguém: mostro-o; passo por isso; e é a qualidade de um olhar que fala por mim, ou algum gesto discreto, um tom; no fundo, uma subtileza.
Se alguma coisa este distanciamento social nos pode ensinar, que seja sobre o seu oposto: a descoberta real do outro. A curiosidade, não só pelas suas ideias, mas pelas subtilezas que fazem as entrelinhas de um diálogo: a maneira como alguém faz determinados gestos, a forma como fala, como soa a sua voz, a forma como escuta, a posição que ocupa para o fazer; para onde olha quando falamos frente-a-frente?
E, de certa maneira, este momento pode provocar-nos a descoberta de qualquer coisa profundamente teatral: talvez tudo isto nos ensine a contracenar com a vida – expressão que roubo ao Luis Miguel Cintra.
Mas seja esta ou outra a descoberta deste momento, o importante é seguir o segundo conselho de Shakespeare: manter o lobo afastado da porta. Porque agora, estamos ainda na Estrada Nacional número 2. Já descobrimos o céu cinzento, intimidante. Tomamos as devidas precauções. Vestimos o impermeável, conduzimos um pouco mais devagar, pelo menos não temos pressa de chegar ao inevitável destino. Mas avançamos, confiantes. Estamos na Estrada Nacional número 2, e talvez agora, como aconteceu no verão de 2016, à nossa chegada, a tempestade já tenha passado.