Enquanto atravesso esta planície, os primeiros raios de sol iluminam autênticos monstros de pedra que se levantam na paisagem cor de mel. Volto de uns dias de paragem numa pequena povoação na Estremadura espanhola. Faço esta viagem de mota, e isso dá-me a possibilidade de, enquanto viajo, não fazer mais nada senão conduzir e pensar. A mota não tem rádio, eu não levo qualquer género de aparelho que me permita fazer chamadas ou tirar dúvidas no GPS. É um exercício curioso, tentar adivinhar o caminho; de vez em quando encostar na berma com a impressão de que os últimos quilómetros foram na direcção errada. Mas, portanto, viajo sempre pensando noutra coisa que não o vento que faz, ou a chuva que se adivinha. Vou sonhando, fazendo histórias, assistindo a diálogos entre personagens que alguma coisa me inspira. E foi num destes sonhos, olhando para um destes monstros de pedra, que pensei em Eyolf. Compreendi o fascínio pela Mulher dos Ratos, pus-me a imaginar o seu poder hipnótico, porque hipnótica é a paisagem. E a extraordinária contradição desta visão que é ao mesmo tempo bela e consumidora. Olhar para esta planície, para estes montes, poder ver como é belo, e pensar: também isto me pode desgraçar. Parece-me tornar evidente a complexidade da experiência. Nem tudo é evidente; na verdade, pouca coisa o é. Não é um sorriso ou uma gargalhada garante de felicidade, não é uma criação extraordinária garante de um espírito efusivo. E isso, tendo a crer, é coisa que se percebeu no clube de leitura que fizemos este mês, em que lemos “O Pequeno Eyolf”, de Ibsen. No clube de leitura, e nos momentos extraordinários que passámos na plataforma do Funicular, no início do mês, enquanto participávamos no Festival MESCLA. Abordar todos aqueles autores trouxe-me um pensamento um pouco mais variado em relação aos assuntos que me ocupam a cabeça. Afinal, esse é o maior contributo que CRETA pode dar a todos os que com CRETA se cruzam: a pluralidade, a heterodoxia, um vislumbre da complexidade da experiência humana. Tudo isto, através de textos da dramaturgia mundial, de textos da poesia portuguesa, e de encontros que um espectáculo ou uma oficina ou um debate podem provocar.

Em Agosto, CRETA não tem nenhuma actividade. Preparamos os meses que se seguem. Em Setembro retomamos com um Recital em torno da “Écloga de Jano e Franco”, de Bernardim Ribeiro, mais um clube de leitura (lemos o “Despertar da Primavera”, de Frank Wedekind), e uma conversa em torno de uma das “Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, de Agostinho da Silva. E não fazemos nada em Agosto porque não vos queremos sobrecarregar. Haverá muito que fazer neste mês. Começa, não tarda, a Feira de São Mateus, é certo; há uma lista inteira de livros para ler, não nego; mas não posso deixar de partilhar um título: ofereceram-me há uns tempos um livro escrito pelo senhor Paul Lafargue, um jornalista nascido em Cuba, genro de Karl Marx. O livro do senhor Lafargue chama-se “O Direito à Preguiça”. Eu sei que é difícil ceder, eu próprio confirmo que a cabeça está sempre a fervilhar. Mas, nos dias que passei na pequena povoação espanhola, fiz o exercício de tentar não fazer nada. É uma espécie de trampolim; estamos carentes desse não fazer nada. E é muito difícil praticá-lo: há sempre coisas pequenas que se acumulam nos ombros, e temos o telefone com o email, o Facebook, o Instagram. Fica o desafio: pelo menos num destes dias usufruir do direito que Lafargue anuncia.

Bom, os monstros de pedra já estão todos iluminados. Fez-se dia, e eu ainda estou na planície.

Como sempre, sabem que podem responder a este email.

Um abraço, e alguma preguiça.
Guilherme

© Fotografia de Guilherme Gomes