E, num instante, esta é já a terceira carta que vos dirijo. Corresponde a dois meses de CRETA, e é espantoso ver como em dois meses tanta coisa pode acontecer. Em dois meses conheci pessoas, e com elas comecei a trocar ideias; em dois meses houve espaço para surpresas e confirmações; em dois meses até para quezílias houve tempo.

Estou a escrever-vos esta carta e penso numa coisa que não me sai da cabeça nos últimos meses: como nasce uma palavra na boca de alguém? Como se forma? O que segura a palavra – e como se tem acesso ao seu esqueleto, ou à sua estrutura, se a quisermos ver como construção? E a palavra surge como uma espécie de poço, de onde se recolhem todos os sentidos. E há a palavra segredo, a palavra amor, a palavra paz, a palavra infinito, a palavra pai, e a palavra mãe, há a palavra dor, e a palavra traição, a palavra sofrimento. Palavras que trazem consigo o mundo inteiro; que formam pontes entre mim e aquele que me ouve, ou lê. Comunicam. Palavras preciosas, talvez fosse possível prescindir de grupos de palavras: deixar uma palavra só, e que ela dissesse. Talvez fosse possível carregar uma palavra de tanto significado, que dizendo pouco traduzimos tudo. A poesia é isto, afinal. E no cinema, são referência para mim os filmes de mestres nórdicos, em que a economia da palavra é um jogo de tensão tão forte que nos intimida. Lembro-me de um filme, em particular, por se chamar “A Palavra”, de Carl Theodor Dreyer. Fica a sugestão.

Falo da palavra porque é essa a ponte entre nós neste preciso momento, enquanto estão a ler este texto. E porque ao longo destes dois meses tem sido em torno da palavra o trabalho que vamos desenvolvendo. Em Junho, depois de fazermos a segunda sessão da Oficina de Figurinos em torno do Princípio de um Vestido, conversámos com Luis Miguel Cintra sobre encenação, aproveitando a presença do encenador em Viseu para os ensaios de ERMAFRODITE, que apresentámos numa curta carreira de três récitas no final do mês. Dialogar com o Luis Miguel soa-me sempre a desafio. O que ele nos propõe, até na direcção de actores, é por vezes difícil de compreender – e uma tentativa de questionar todas as regras. Uma grande aprendizagem é ver como Luis Miguel Cintra não se conforma com soluções que já encontrou; não faz atalhos, procura sempre fazer o caminho inteiro de forma honesta e cheia de questões, tenho a impressão de que como se estivesse sempre a começar. ERMAFRODITE foi um desafio a todos os níveis, e fico muito feliz por termos apresentado este objecto – nem sei ao certo como lhe chamar – em Viseu. Ele não se integra realmente no que já conhecemos.
Ainda em Junho, fizemos a apresentação formal do projecto CRETA. E encontrámo-nos pela primeira vez para ler em conjunto, na primeira sessão do Clube de Leitura. Lemos “Pai”, de August Strindberg, e foi uma noite linda, devo dizer a quem não pôde estar!

Em Julho, o nosso percurso será um bocadinho mais intenso e curto: a convite do Município de Viseu, participamos no festival Mescla com um conjunto de conversas em torno de poesia. No fundo, vamos olhar para os autores que abordamos ao longo do ano nos Recitais de Poesia para dedicar algum estudo que não será possível tornar público quando fazemos os recitais; e vou partilhar a obra de alguns outros poetas que ressoam, para mim, de maneira particular. Vou contar com a presença dos restantes actores do Teatro da Cidade nestes encontros, bem como da Sofia Moura e do Roberto Terra. Serão encontros curtos, de 40 minutos, todos dos dias, entre 2 e 7, às 18h.

Depois, temos encontro marcado para mais um Clube de Leitura, no dia 16. Desta vez, vamos ler “O Pequeno Eyolf”, de Henrik Ibsen, uma peça que proponho para o Clube de Leitura precisamente porque não conhecia. Li-o um destes dias, e é um texto muito bonito sobre a Responsabilidade Humana – tema a que não podemos ser alheios quando nos chegam fotografias e notícias de gente como nós que morre nas margens de um rio, ou no areal de uma praia – ou quando assistimos a uma alteração do clima tão evidente e transformadora como a que atravessamos. Tenho a certeza de que este Clube de Leitura será tão estimulante como o anterior. Já podem ter acesso ao texto. Se não conseguirem estar presentes, façam-se representar por amigos que eventualmente encontrem interesse em serões de discussão como o que tivemos.
E é isto.

Tenho recebido respostas a estas cartas; não se inibam de escrever de volta, prometo que respondo!  Obrigado a todos por darem a impressão de que CRETA acontece em tão boa companhia.

Um abraço,
Guilherme

© Ilustração de L Filipe dos Santos