Quinta Carta de CRETA

08/26/2019Água Nova Para As Mesmas Margens, Clube de Leitura, Recital de Poesia, Newsletter, Guilherme Gomes

Setembro é sempre o mês da reentrada. Também em CRETA o princípio se aplica. Há sempre encontros por marcar, e, depois de um mês em que vos convidámos a preguiçar, voltamos com um calendário.

Lembro-me bem de ouvir falar em éclogas pela primeira vez. Estava na sala de ensaios do Teatro do Bairro Alto, casa da Cornucópia durante 40 anos. Foi o José Manuel Mendes quem falou disto. Estaríamos a fazer um espectáculo a partir de textos de Gil Vicente e seus contemporâneos, com certeza; as éclogas vieram à baila, e eu perguntei o que eram. Fiquei sempre com a ideia da existência destes textos atrás da orelha. Foi muito evidente, quando começámos a trabalhar no projecto CRETA, que em algum momento haveria de querer ler e partilhar éclogas: dar a conhecer a quem, como eu, ignora; oferecer uma leitura a quem já conhece; estudar, compreender as suas dinâmicas, os seus temas, as personagens. E foi pela internet que comprei um livro com aspecto muito antigo (as folhas frágeis, as páginas descosidas, o tom castanho – e aquele cheiro). Foi aí que encontrámos a Écloga de Jano e Franco, que estreamos no início de Setembro, ali no Fontelo, e apresentamos todos os domingos do mês. Este Recital, que esteve para se chamar “Todo o que te ei contado / Todo cási aconteceu”, é uma criação do Roberto Terra, actor que está sediado em Viseu, que convidámos a fazer a leitura do poema de Bernardim. Para além do encontro com outra pessoa na criação, há o prazer de ver trabalhar com inteligência; e tenho confiança de que o que o Roberto está a fazer não é apenas bom, será importante.

Logo a seguir, voltamos a sentar-nos à mesa. No dia 3, lemos O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind, no nosso Clube de Leitura de Peças de Teatro. Sobre este texto escrevi umas palavras que podem ler no site. De qualquer forma, chamo particular atenção para esta sessão do Clube, que acontece no espaço onde a Inês Flor trabalha, e que gentilmente nos cede para estes encontros. Parece-me que este é um daqueles textos que podem mudar uma vida.

No último fim-de-semana do mês, mais propriamente, no dia 28, apresentamos uma novidade. Chamamos-lhe Água Nova Para as Mesmas Margens. Em três encontros, vamos ler e conversar sobre as Sete Cartas a Um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva. Para isso, convidamos oradores que respondem a este requisito: são água nova. Neste primeiro encontro, na Escola Secundária Alves Martins, falamos com a Mariana Pereira e a Rosário Pinheiro.

Escrevo isto e penso: qual será a coerência entre cada uma destas actividades? Que pontes invisíveis ligam o Recital ao Clube de Leitura à Água Nova? Uma resposta me parece possível: Setembro fala-nos de afirmação. De alguém que se reconhece. Do pobre Jano, que parece ter enfim decifrado o seu destino, dos jovens que Wedekind escreveu a lutar contra a herança, dos conselhos de um filósofo para seu aprendiz. É sobre este momento de afirmação, um momento em que, de certa maneira, nos descobrimos, passamos para um outro estado, uma outra atenção. Quando se nos acendem luzes. Em Setembro, em CRETA, é disso que estamos a falar.

Sobre todas estas actividades há muita coisa para ler no site, que vos convido a explorar.
Enfim, reentramos. E este mês promete ser muito entusiasmante!
Obrigado por estarem desse lado.
Como sempre, sintam-se à vontade para responder a esta mensagem.

Um abraço, e até breve.
Guilherme

© Fotografia de Luís Belo

Quarta Carta de CRETA – Um postal de Verão

08/02/2019Newsletter, Guilherme Gomes

Enquanto atravesso esta planície, os primeiros raios de sol iluminam autênticos monstros de pedra que se levantam na paisagem cor de mel. Volto de uns dias de paragem numa pequena povoação na Estremadura espanhola. Faço esta viagem de mota, e isso dá-me a possibilidade de, enquanto viajo, não fazer mais nada senão conduzir e pensar. A mota não tem rádio, eu não levo qualquer género de aparelho que me permita fazer chamadas ou tirar dúvidas no GPS. É um exercício curioso, tentar adivinhar o caminho; de vez em quando encostar na berma com a impressão de que os últimos quilómetros foram na direcção errada. Mas, portanto, viajo sempre pensando noutra coisa que não o vento que faz, ou a chuva que se adivinha. Vou sonhando, fazendo histórias, assistindo a diálogos entre personagens que alguma coisa me inspira. E foi num destes sonhos, olhando para um destes monstros de pedra, que pensei em Eyolf. Compreendi o fascínio pela Mulher dos Ratos, pus-me a imaginar o seu poder hipnótico, porque hipnótica é a paisagem. E a extraordinária contradição desta visão que é ao mesmo tempo bela e consumidora. Olhar para esta planície, para estes montes, poder ver como é belo, e pensar: também isto me pode desgraçar. Parece-me tornar evidente a complexidade da experiência. Nem tudo é evidente; na verdade, pouca coisa o é. Não é um sorriso ou uma gargalhada garante de felicidade, não é uma criação extraordinária garante de um espírito efusivo. E isso, tendo a crer, é coisa que se percebeu no clube de leitura que fizemos este mês, em que lemos “O Pequeno Eyolf”, de Ibsen. No clube de leitura, e nos momentos extraordinários que passámos na plataforma do Funicular, no início do mês, enquanto participávamos no Festival MESCLA. Abordar todos aqueles autores trouxe-me um pensamento um pouco mais variado em relação aos assuntos que me ocupam a cabeça. Afinal, esse é o maior contributo que CRETA pode dar a todos os que com CRETA se cruzam: a pluralidade, a heterodoxia, um vislumbre da complexidade da experiência humana. Tudo isto, através de textos da dramaturgia mundial, de textos da poesia portuguesa, e de encontros que um espectáculo ou uma oficina ou um debate podem provocar.

Em Agosto, CRETA não tem nenhuma actividade. Preparamos os meses que se seguem. Em Setembro retomamos com um Recital em torno da “Écloga de Jano e Franco”, de Bernardim Ribeiro, mais um clube de leitura (lemos o “Despertar da Primavera”, de Frank Wedekind), e uma conversa em torno de uma das “Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, de Agostinho da Silva. E não fazemos nada em Agosto porque não vos queremos sobrecarregar. Haverá muito que fazer neste mês. Começa, não tarda, a Feira de São Mateus, é certo; há uma lista inteira de livros para ler, não nego; mas não posso deixar de partilhar um título: ofereceram-me há uns tempos um livro escrito pelo senhor Paul Lafargue, um jornalista nascido em Cuba, genro de Karl Marx. O livro do senhor Lafargue chama-se “O Direito à Preguiça”. Eu sei que é difícil ceder, eu próprio confirmo que a cabeça está sempre a fervilhar. Mas, nos dias que passei na pequena povoação espanhola, fiz o exercício de tentar não fazer nada. É uma espécie de trampolim; estamos carentes desse não fazer nada. E é muito difícil praticá-lo: há sempre coisas pequenas que se acumulam nos ombros, e temos o telefone com o email, o Facebook, o Instagram. Fica o desafio: pelo menos num destes dias usufruir do direito que Lafargue anuncia.

Bom, os monstros de pedra já estão todos iluminados. Fez-se dia, e eu ainda estou na planície.

Como sempre, sabem que podem responder a este email.

Um abraço, e alguma preguiça.
Guilherme

© Fotografia de Guilherme Gomes