Esta carta foi escrita para ser gravada. Tentamos simular a experiência por escrito, mas aconselhamos a que ouçam!
(Ouvimos os sinos da igreja tocar uma hora; depois, o canto dos pássaros.)
A passagem do tempo é uma coisa diferente para cada um de nós, não é novidade. E, às vezes, parece difícil entender exactamente a dimensão das coisas no tempo. Na sua Poética, uma das distinções que Aristóteles estabelece entre a Tragédia e a Epopeia é o seu alcance na narração de acontecimentos: uma dura, por assim dizer, mais tempo que a outra. Em Sociedades Primitivas, primeiros apontamentos do que mais tarde chamaríamos teatro serviam como rituais de passagem entre estações do ano. No século XX, Beckett coloca em cena precisamente aquilo que poderíamos entender como um desperdício de tempo, personagens à espera. Não sabemos dizer o que é o tempo, muito menos acordar no que se deve fazer com ele; uma coisa, ainda assim, é inegável: ele passa.
Como nos diz aquele soneto do David Mourão-Ferreira que fala da experiência do tempo:
“E por vezes as noites duram meses / E por vezes os meses oceanos”…
Nesta carta, eu gostava de pensar sobre isto. É que há uns tempos, o Bernardo Souto, que é meu amigo e colega no Teatro da Cidade, falou-me de um conceito que recuperou: uma coisa chamada o calendário cósmico.
(som de chamada)
Bernardo – Gooooood Morning Vietnam!!
(começa música)
Este aqui é o Bernardo. Imagino que já possam adivinhar que é entusiasmante ouvi-lo falar sobre aquilo que o apaixona. Mesmo quando se engana…
Bernardo – … Os últimos raios de sol, aqui no Cacém. Raios que demoraram 13 minutos a percorrer 150 milhões de quilómetros.
Guilherme – Incrível. Não foram 8?
Bernardo – 8?
Guilherme – Não foram 8 minutos?
Bernardo – 8 minutos, sim.
Guilherme – E não 13.
Bernardo – Não, isso fui eu que já estava a baralhar as coisas.
Eu sou o Guilherme Gomes, esta é a décima segunda carta de Creta. E hoje, claro, vamos falar da passagem do tempo. Porquê? Conto mais adiante. Por enquanto, vou querer saber porque é que o Bernardo se lembrou do calendário cósmico.
(fim da música)
Bernardo – Então, eu estou aqui a pensar. Estou aqui parado. E imaginava: se eu fosse cientista e não tivesse nada à minha disposição, sem ser uns livros e alguma internet, e o meu trabalho fosse mesmo estar aqui fechado e pensar sobre alguma coisa que possa mudar a mente de todos os seres humanos… Eu começo a pensar pelo princípio. E o princípio é a origem de quem é que eu sou e de onde venho. E eu quero responder a estas perguntas. E comecei a questionar isto e lembrei-me que já tinha dado isto no sexto ano. Entretanto, fui falar com a minha professora, passados 13 anos, a minha professora de ciências, e ela aconselhou-me a ver a série do Carl Sagan, uma série produzida em 1984, e a ver, sobretudo, o calendário cósmico. Nesse calendário mostra: desde o início do Big Bang até aos nosso dias, ou seja, até ao aparecimento do Homem. O nosso aparecimento… acontece, precisamente… em Dezembro, nos últimos cinco segundos.
(Começa a música.)
O Bernardo entusiasma-se a falar desta descoberta. E eu pergunto-lhe o que é que mais o comove, no meio disto tudo. O que é que o calendário cósmico ensina, e ele diz-me que
Bernardo – A memória… É a única coisa que o ser humano leva consigo até à morte, são memórias.
A memória…
E eu lembro-me de uma noite, ainda criança, no Alentejo, deitado num parque infantil, com o meu pai, a minha mãe e o meu irmão. Era de noite, e o céu enorme. E nós, deitados na relva de barriga para cima, com uma boa parte do universo à nossa frente.
Anos mais tarde havia de aprender que naquela noite estávamos a olhar para o passado.
Que aquilo que o Bernardo disse, sobre os oito minutos que a luz do sol demora a chegar até nós, aplica-se a tudo o que está ali em cima. Estávamos a olhar para pontos brilhantes tal como eram há milhões de anos.
Um desencontro no tempo.
Um desencontro que Italo Calvino tornou muitíssimo interessante numa obra chamada “Todas as Cosmicómicas”. O meu exemplo preferido é o de um conto chamado “Anos-Luz”, em que o narrador nos conta que um dia, ao observar o céu com o seu telescópio, como era seu costume, vê, numa galáxia a cem milhões de anos-luz de distância um cartaz com as palavras: EU VI-TE. Ele sabia que a imagem daquele cartaz tinha demorado cem milhões de anos a chegar até ele, e que aquilo que a pessoa que fez o cartaz viu demorou cem milhões de anos a chegar até ela, portanto o narrador teria de recuar duzentos milhões de anos para perceber o que a pessoa do cartaz tinha visto. E ele lembrou-se. Há exactamente duzentos milhões de anos, nem um dia mais, nem um dia menos, tinha de facto acontecido uma coisa que ele tinha tentado esconder. O conto continua para nos mostrar os mecanismos do narrador para um (podem imaginar que demorado) esclarecimento.
Este conto sempre me fez pensar que um gesto discreto, é um gesto ainda assim. A sorte que o narrador teve em que alguém escolhesse, no meio da vasta paisagem que é o céu nocturo, olhar para ele – ainda por cima no momento em que ele faz precisamente o que não queria que ninguém visse.
Nada em que o calendário cósmico não tenha feito o Bernardo pensar
Bernardo – Nós andamos para a frente sem olhar para trás… Nós caminhamos sem saber o que somos. E, como Carl Sagan dizia (e eu faço disto outra frase), ele dizia que nós precisamos de conhecer os outros planetas para conhecermos melhor o nosso. E eu acho que nós precisamos de conhecer melhor as outras pessoas, melhor o ser humano para nos conhecermos melhor a nós próprios.
A descoberta do Bernardo é a revelação de tanto passado. Chegamos ao universo nos últimos segundos de um ano. Já se passou tanto antes da nossa chegada, infinitamente mais do que aquilo que a humanidade experimentou até agora.
Somos tanto e tão pouco ao mesmo tempo.
Num dos ensaios do Hamlet, no Teatro da Cornucópia, estávamos a tentar compreender as intenções das personagens mais jovens, e alguém se virou para os mais jovens do elenco e disse “Vocês é que podem falar disto, ainda são novos.” Mas o José Manuel Mendes, um dos veteranos da companhia, pessoa de uma inteligência com que eu raramente me cruzei, diz: “Não, eles não conseguem. Ainda não têm distância.”
Talvez a memória do Passado nos permita a distância que a experiência do Presenta não facilita. E talvez esta distância seja boa companheira da reflexão.
Na Alemanha do século XVI, em colégios de jesuítas, o teatro começava a ser usado como ferramenta didática. Este percurso há de culminar na Alemanha do século XX, na proposta de Bertold Brecht de um teatro baseado no distanciamento, para que precisamente se tornasse um contributo para a reflexão.
O distanciamento pode ajudar a pensar.
E a memória, portanto. O saber o que nos antecede pode salvar-nos dos perigos que a soma do poder com a ignorância carrega.
O Bernardo recuou treze anos para se lembrar do calendário.
E Carl Sagan, procurando construir o presente e a possibilidade do futuro, passou a vida a estudar os astros e as estrelas; passou a vida, parece-me, a estudar o passado.
O calendário cósmico dá-nos mais a noção do passado que do futuro. E parece-me, à boa maneira de Aristóteles, não um exemplo de tragédia, mas uma impressionante epopeia.
Mas porque é que estamos a falar de tempo e memória nesta carta?
(Som de chamada.)
Ana – Estou?
Guilherme – Alô, Ana? Estou a gravar a décima segunda carta de CRETA. Temos feito uma por mês, quer dizer que este é o 12º mês. Ou seja, o primeiro ano. Passou um ano desde que começámos a dar notícias de CRETA. E eu lembrei-me de um poema; que comecei a pensar que seria sobre a passagem do tempo, mas percebo agora que pode ser sobre a memória. É do David Mourão-Ferreira. Olha só:
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
—
Esta foi a décima segunda carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm dos sites bensound.com e de incompetech.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.