Décima Quarta Carta de CRETA

06/04/2020Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Aquela canção do Bob Dylan. Aquela que começa por nos perguntar “quantas estradas tem um homem de caminhar, até lhe podermos chamar homem” é uma grande canção.

Diz que a resposta está no vento. Claro. Como quem diz: anda por aí. Já existe, ninguém a vai inventar, só precisa de ser animada.

Como no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, do padre António Vieira: o homem é pó, e precisa de vento para se animar. Aquela coisa chamada força anímica. Emoção – que é uma palavra irmã da palavra movimento.

Mas “quantas estradas tem um homem de caminhar, até lhe podermos chamar homem” é a pergunta mais importante. Porque nela podemos ouvir: quantos quilómetros de frustração até que esse reconhecimento chegue? Até que o vento se levante? E, enquanto caminha, o que é que o homem que há de ser é?

Para mim é sempre esta a questão na arte. Já vos devo ter dito por aqui que um dos meus faróis é a canção do Blind Willie Johnson: what is the soul of a man (o que é a alma de um homem). Se não conhecem, aconselho. Mesmo. Desliguem isto, e vão ouvir. É uma canção eterna. Quando regressarem continuo, para vos dizer que esta questão “o que é a alma de um homem” parece-me dar sentido à arte, para quem procura encontrar nela algum sentido. Todos os objectos artísticos parecem a possibilidade de uma aproximação à resposta: seja porque sugerem o que pode ser a alma de um ser-humano (nestas ocasiões gostaria de ser inglês para dizer fellow humanbeing), seja porque são objectos reveladores do seu criador. E, por seu intermédio, de nós mesmos.

Ou seja, para quem queira, o objecto artístico pode contribuir para responder à pergunta que Blind Willie Johnson nos coloca, e à interrogação de Bob Dylan também.

A verdade é que muitas vezes ouço o eco desta pergunta nos criadores que mais admiro. Não tanto porque queiram saber a essência do ser humano, mas porque se tentam encontrar na definição de ser humano. Talvez Blind Willie Johnson tenha perguntado o que é a alma de um homem porque não se sentiu um homem em algum momento.

No “Lamento de Ĉiela”, que estreámos no ano passado, o Pierrot no espectáculo queixava-se disso mesmo. E assistimos a tantos exemplos de desumanidade que por vezes nos pode passar pela cabeça, com legitimidade, o que Flávio Migliaccio, actor brasileiro, escreveu na sua carta de suicídio há não muito tempo: a humanidade não deu certo.

Eu sei: a carta que vos dirijo este mês não parece muito optimista. Mas é que vai manchada pelo momento que atravessamos. E porque, em resposta ao momento, sinto que é agora que a pergunta é mais importante. O que é a alma de um homem?

Seja num livro que nos desvenda numa personagem, ou numa canção que se canta quando a equipa entra no estádio. Por exemplo, quando o Liverpool entra no relvado, ouvimos “You’ll Never Walk Alone”. É uma canção que tem a sua origem numa peça de teatro, curiosamente. A peça de teatro “Liliom”, do húngaro Molnár, deu origem ao musical “Carousel”, da dupla Rodgers e Hammerstein, de onde a música foi pescada por uma série de cantores de diferentes gerações e estilos, até que Gerry & the Pacemakers pegaram na canção e uma série de clubes de futebol se fundaram nela para ganhar alento. Um vento que se levanta.

Acho que é uma mensagem que podíamos deixar ao senhor Dylan. Porque nos encontramos tantas vezes, tanto tempo, nas estradas que nos conduzem à humanidade, que é bom lembrar que a caminhada se faz mais facilmente em companhia. Que não estamos sozinhos. Que outros como nós se se perguntaram: o que é a alma de um homem. Que essa dúvida nos aproxima, e que o vento que contém a resposta, bom, o vento é a arte que o põe em movimento – posto por outras palavras, é a arte que o emociona.

No fundo, é sobre isto que vamos falar com a Cátia Terrinca, na visita que nos faz no dia 13 de Junho. Será a primeira vez que falamos sobre “O PRINCÍPIO DE UM ESPECTÁCULO” este ano. Será na Casa do Miradouro, com lotação muito limitada. Podem inscrever-se no nosso site, e o meu conselho é que sejam tipo o Speedy González.

A importância da arte na vida de uma pessoa é o tema explorado no novo “LUGAR DE ONDE SE OUVE”. É um texto escrito por mim, belíssimamente interpretado pela Nídia Roque (a sério, comovo-me e redescubro o texto através da interpretação da Nídia) e lindamente sonorizado pelo Sérgio Delgado (ainda acreditam em mim? É que estou a falar a sério.). Nele, uma mulher ouve um misterioso violinista no meio da noite, nos claustros da Sé de Viseu. A consequência deste encontro… Bom, terão de esperar por dia 27 para ouvir.

Sinto que falámos muito de resiliência e limite nesta carta. E o Bernardo Souto vem a Viseu fazer pesquisa durante duas semanas: uma com o Zé Mágico, outra com o Hugo Caiado, que é professor de ténis. Será o momento de pesquisa para um algo de que falaremos no próximo mês. É que o Bernardo, o Zé e o Hugo nos vão dar a conhecer os pontos de contacto entre o teatro, o ilusionismo e o ténis. Um exercício sobre os limites e a resiliência de um actor.

Quis deixar para o fim o princípio do mês. É já no dia 9 que lemos “Orfeu da Conceição” de Vinícius de Moraes, no CLUBE DE LEITURA DE PEÇAS DE TEATRO. As inscrições estão abertas no nosso site: podem marcar presença física ou digitalmente. A sessão vai acontecer nos claustros da Sé. Estou muito ansioso, porque é uma peça cheia de música e um cenário de luxo. O texto é uma adaptação do mito de Orfeu e Eurídice para o contexto de uma favela no Rio de Janeiro.

Falámos muito do papel da arte na vida de uma pessoa. E Orfeu é o poeta por excelência. A certa altura na peça, Eurídice deixa-o só, e Orfeu diz a fala mais bonita que já se ouviu em português, na minha opinião. Não resisto: vou ler a fala para me despedir. Mas deixo-vos um aviso prévio: não será isto que vos vou ler uma porta escancarada para a resposta à pergunta o que é a alma de um homem?

Eurídice atira-lhe um beijo e sai. [Orfeu, sozinho, diz]
Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada…
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto — que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu, tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem —, nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice…
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres — que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai, tua vida, pássaro contente
Vai, tua vida, que estarei contigo!”

Esta foi a décima quarta carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.