Décima Quinta Carta de CRETA

08/01/2020Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

Essa cena de estar perdida é muito fixe.
Porquê?
Porque é o teu instinto que tem de se safar.
(música)
Olá.
É verdade, saltámos uns dias. Não vos falei no início de julho porque, enfim, estava neste lugar de que a Sónia Teixeira está a falar: andava perdido. Nem sempre é fácil encontrar o caminho para as cartas que vos dirijo. E entre escritas e candidaturas, entre viagens e corridas, entre sonhos e desilusões não consegui encontrar o caminho para uma carta no início de julho.
Mas aqui estamos, e este mês “encontrar o caminho” pode ser uma pista apropriada para olhar para a programação de CRETA. Parece que não fazemos outra coisa. Todas as propostas são procuras. Como se começássemos uma caminhada sem saber onde a terminaremos. Uma espécie de andar na vadiagem. Vaguear procurando guardar o que a caminhada nos dá. Foi assim que o professor Agostinho da Silva justificou um conjunto de conversas para que se disponibilizou e a que se chamou “Conversas Vadias”, e é assim que, pessoalmente, encaro a vida.
Na gravação que ouvem de fundo, estou a caminhar com a Sónia no Monte de Santa Luzia, à procura do lugar onde haveria de acontecer o recital que todos os domingos de Julho, a Sónia repetiu. Um recital sobre o conto “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Um conto em que de um caminho nada parece recuperável. Tudo desaparece, todas as referências que fomos encontrando para fazer o caminho de volta. Como num labirinto. Parece o contrário do que vos disse até agora, mas, para mim, a pergunta é: qual é o fio de Ariadne que nos há de salvar?
O meu nome é Guilherme Gomes e esta é a décima quinta carta de Creta.
(fim da música)
– Bem, este lugar está cheio de memórias. Houve alguém que veio para aqui cortar madeira, e parece que passou aqui um monstro.
– Se calhar passou.
– O Monstro do Monte de Santa Luzia.
(tempo)
Antes de mais, contar-vos o que não vos contei no início de Julho, ou seja, apresentar em retrospetiva o que ia antecipar: começámos o mês por receber a visita do José António Tenente, para falar d’O Princípio de um Espectáculo. A Nídia Roque conduziu a conversa. E, durante mais de uma hora, ouvimos o que inspira, como trabalha, o que espera, o que comove um dos figurinistas mais activos do país. Ao Zé e à Nídia, um agradecimento especial. Mais para a frente, lançamos um podcast em que podem ouvir um pouco desta conversa.
Depois, estreámos o recital “Regar a Terra”, um recital que vive da relação da Sónia Teixeira com o conto “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner.
Ainda houve tempo para um clube de leitura. Voltámos aos claustros da Sé de Viseu para ler “A Orelha de Deus”, de Jenny Shwartz. Ouvimos o lugar que a Raquel Castro imaginou e habitou no Lugar de Onde se Ouve, e rematámos o mês com outra conversa sobre O Princípio de um Espectáculo agora com o Jorge Fraga, numa tarde que dificilmente esquecerei: falámos sobre a verdade no trabalho de qualquer criador de teatro. E na pertinência de se fazer teatro. Melhor, da dignidade de se fazer teatro.
O mês desemboca em Agosto, que começa com outra procura: chamámos-lhe “Os Caminhos do Actor”, e são duas propostas de metodologia para o actor conduzidas pelo Bernardo Souto – que já se ouviu nestas cartas – o José Pereira, que é ilusionista, e o Hugo Caiado, que é professor de ténis.
Pronto, apresentado Julho, vamos para a carta.

Não deve ser por acaso que a ideia de estar a caminhar me aparece tantas vezes. No outro dia, num podcast francês a que cheguei por engano, um podcast de autoajuda, ouvi uma voz feminina dissertar longamente sobre deambulação. Eu sei o que estão a pensar: afinal não foi um engano assim tão grande. A evolução do episódio tinha nuances que eu não vou citar. De qualquer forma, enquanto corria – que é quando ouço os podcasts – pensava sobre deambulação. E, enquanto ouvia a voz da rapariga, pensava na minha maneira de deambular.
Quando calço os ténis para ir correr, sei mais ou menos ao que vou. Tenho uma tarefa mais ou menos concreta, e executo-a. Mas muitas vezes saio de casa para caminhar. Nessas ocasiões, não sei aonde me dirijo. E é nessas ocasiões que mais facilmente consigo pensar. Já falámos nisso, aqui, mas há uns dias encontrei uma definição boa para este exercício.
Foi a ouvir uma masterclass do David Lynch.
O mestre, chamo-lhe assim porque era uma master-class, dizia que as ideias funcionam assim: tu estás junto a uma porta fechada. Do outro lado há uma pessoa com um puzzle montado. Essa pessoa vai desmontando o puzzle e passando as peças uma a uma (e espaçadamente) para o teu lado da porta. Tu apanhas uma peça, achas graça à forma, gostas das cores. Não sabes bem o que fazer com ela, mas guardas a peça. Depois, outra, e outra, e outra. São peças que parecem independentes entre si, mas pertencem todas ao mesmo puzzle. E, um dia, tu percebes. Ah, então esta é com esta, e esta ao lado desta, e isto é aquilo. Tudo se arruma na tua cabeça, e a pessoa do outro lado da porta passou-te o puzzle por inteiro.
A pessoa do outro lado da porta é como uma espécie de Ariadne, a dar-nos a solução do labirinto. O labirinto que a Sophia denuncia no conto. A pessoa do outro lado da porta a resolver o andar perdido com que a Sónia começou esta carta. A pessoa do outro lado da porta como entidade esclarecedora.
Agora, que nome tem essa pessoa?
Eu ando fascinado com dois italianos: por um lado Michelangelo (sim, o escultor e pintor renascentista), por outro, um tal de Michelangelo, também, mas Michelangelo Merisi, que ficou conhecido como Caravaggio.
Para eles, homens profundamente influenciados pelo cristianismo, talvez esta presença do outro lado da porta fosse Deus. Mas não me parece que Deus nos sirva, neste momento. Até porque acho que somos incapazes de uma relação com a divindade próxima da que tinham estes dois Michelangelos.
Então, que nome dar a esta presença?
Há uns tempos escrevi um texto em que acho que andava à procura do seu nome. Começava assim:
“Na sala onde estou sentado há um relógio de pêndulo: uma caixa de madeira escura com portas de vidro. No seu interior um mecanismo dourado onde mal se vêem os ponteiros. Sobre tudo isto, um cavalo esculpido em madeira.
Uma vez por semana é preciso dar corda ao relógio. Com uma chave, fazer tensão lá dentro. Se não o fizermos, um dia chegará em que o relógio pára. O tempo não parou, não deixou de passar, mas faltou a tensão na engrenagem do seu marcador. Esta tensão necessária não para a passagem do tempo, mas para o reconhecimento dessa passagem. E qualquer coisa viva que este reconhecimento carrega”
O texto continua. Tinha começado por citar uma fala de Macbeth Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow. Uma fala perfeita, um exemplo inspirador da escrita de Shakespeare, que termina assim:

Life’s but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

É uma fala sobre a insignificância da vida. A discrição do sofrimento. O ridículo de qualquer palavra ou pensamento.
“Um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada.”
É uma imagem desarmante. Muito anterior a Camus, que três séculos depois estava a escrever que o único problema filosófico era o suicídio – pois, se perdemos o sentido…
É uma fala pessimista, em última instância, a abrir um texto em que acho que ando à procura do nome da presença do outro lado da porta:
“A emergência do teatro é ser vela que ilumina coisa nenhuma, fogo que arde sem razão aparente. Não se baixaram as armas porque Genet tenha escrito “Os Biombos”, com “O Crime de Aldeia Velha”, Bernardo Santareno não conseguiu prevenir crimes provocados por ódio e incompreensão. Mas esta vela não se pode apagar. É preciso pegar na chave e provocar tensão no relógio. Replicar no relógio a tensão do mundo. É frustrante, grande parte do tempo esta sala está vazia. Mas agora, reparem, sentei-me aqui para escrever. Sou só eu. E valeu-me a tensão que alguém provocou no relógio para ler ao contrário a fala de Macbeth, e terminar, como quem repete o tiquetaque, com Amanhã, e amanhã, e amanhã.”
E, assim, é como se a presença do outro lado da porta fosse o próprio mundo. A tensão do mundo. Ou das tensões que o mundo tem, a que mais nos emociona neste momento.
Agora, estou a escrever um texto que havemos de estrear em Novembro, em Viseu. Chama-se “Invocação ao Meu Corpo”, como o livro do Vergílio Ferreira. Depois, passa por Lisboa, ainda em Novembro. O processo de escrita é exactamente o que David Lynch descreve. E a presença do outro lado da porta tem sido generosa: desde T. E. Lawrence, a Wade Davis, ou Jack Kerouac, as peças do puzzle são muito boas de ter como companhia. Mal posso esperar por ver o quadro que, juntas, desenham.
Mas esta é uma promessa para Novembro. É que, já dizia o outro, agora entra Agosto, e no projecto CRETA começamos com duas semanas de trabalho intenso com o Bernardo Souto, o Hugo Caiado e o José Pereira. São os Caminhos do Actor.
No dia 18 de Agosto, lemos “Farsa da Rua W.”, de Enda Walsh. A sessão é coordenada pela Gi da Conceição e já se podem inscrever no site. Podem participar ao vivo ou por Zoom, relembro.
No dia 22, lançamos o segundo episódio de “Já não estamos lá mas é como se nunca tivéssemos saído”, uma criação em três episódios da companhia Mochos no Telhado para “O Lugar de Onde se Ouve”.
E, finalmente, no dia 29, recebemos o Miguel Ramos e a Rosário Melo para falar sobre “O Princípio de um Espectáculo”. O Miguel e a Rosário pertencem à Confederação, uma companhia de teatro sedeada no Porto. E o trabalho deles é inspirador.

Antes de me despedir, no outro dia, uma amiga enviou-me uma canção. É uma canção que surge num contexto muito específico. Mas partilho-a mais porque é a expressão de desejo. Poderíamos dizer, como diz Tolentino de Mendonça, expressão de impossível. Portanto, desculpem, hoje não termino com a canção do costume, em vez disso, cá vai: La quête, de Jacques Brel – uma canção que começa por dizer: sonhar um sonho impossível, e termina com a frase: alcançar a estrela inacessível. No fundo, mais uma resposta à pergunta: qual o nome da pessoa que está do outro lado da porta?

Esta foi a décima quinta carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.