17.ª Carta: “O resto é silêncio”

06/18/2021Newsletter

As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.

(Música animada.)

“Alguma vez tiveram de esperar na farmácia, e se puseram a ver como o farmacêutico preparava a receita? Numa balança com peças muito pequenas pesa grama a grama, ou onça a onça, todas as substâncias e pós que compõem o produto final. Algo parecido é o que faço quando vos conto alguma coisa na rádio. Os meus pesos são os minutos e devo utilizá-los com absoluta precisão para calcular quantos devo reservar para um assunto e quantos para outro para que a mistura seja correcta. E perguntam-se: porquê? Ora, quem quer que deseje contar a história do terramoto de Lisboa começará pelo princípio. E contará, depois, tudo o que aconteceu. Mas, se eu o fizesse dessa maneira, não creio que vos conseguisse entreter. Uma casa cai a seguir à outra, uma família perece a seguir à outra; o horror do fogo que se propaga por todos os lados e o horror da água, a escuridão, os assaltos, os gemidos dos feridos e os lamentos do que procuram os seus – ninguém quereria ouvir isto e mais nada, mas isto é o que aconteceu e o que mais ou menos acontece em toda a grande catástrofe natural.”

Começa assim o episódio “O Terramoto de Lisboa”, do programa de rádio “A Hora da Juventude”, de Walter Benjamin, que nos ensina que contar uma história na rádio é uma gestão dos minutos. Quanto tempo se dedica a cada detalhe – de maneira a segurar a atenção do público.

Percebemos que para Benjamin não basta elencar os acontecimentos, será preciso contextualizá-los, humanizá-los com relatos reais, aproximá-lo do ouvinte.

Apesar da forma mais ou menos brincada como li o seu texto, a abordagem de Benjamin neste episódio, e as ideias que ele transmite, têm, poderíamos sugerir, uma preocupação mais jornalística ou histórica do que artística. Aconselha-nos a não contar apenas os factos, e a saber construir uma narrativa, mas responde à realidade empírica. Procura contar o que aconteceu realmente num lugar, num momento. Responde às famosas perguntas do quem, do quê, do como, do quando, e do porquê aplicadas à realidade que poderíamos chamar real.

Ando sempre a remoer este assunto: contar histórias. E estou sempre à procura de livros ou filmes ou entrevistas, o que quer que seja que me ensine sobre o assunto – se tiverem algum conselho, não hesitem; estas cartas, aliás, servem para mim como uma espécie de ginásio: como se organizam as ideias, como se escolhe o assunto, como se expõe. No meu caso, projecto esta procura sempre na criação artística. E, nesse sentido, parece-me que quanto mais pesquiso menos me esclareço.

Pensei muito sobre isso enquanto via o “HAMLET: a monologue”, a versão do Hamlet que Bob Wilson fez e mostrámos em Maio no Forum Viseu. A propósito dessa projecção, tive a oportunidade de entrevistar o próprio Robert Wilson por zoom. E a certa altura, ele diz
Bob Wilson: If you read, tonight, Hamlet, you’re gonna think about it one way, and if you read Hamlet the next morning you can think about it in a very different way, and if you read it the next evening you can think about it still in a different way. Shakespeare could never completely understand what he wrote. It’s full of meanings. So it’s something we can reflect on.

How all occasions do inform against me,
And spur my dull revenge!

I learned it when I was 12 and I’m almost 80 and I can still say it. And everytime I say it i can think about it in a different way. So it’s not to say that it doesn’t have a meaning, it’s full of meanings. But to attach a meaning and interpretation to what we do will negate all the other thoughts. So the reason to work is to say: what is it? What am I saying? And if you approach it with a question, ten years from now, twenty years from now, thirty years from now, a hundred years from now, we can still be reflecting on it, because it’s full of meanings.

Há, neste conselho de Bob Wilson, uma espécie de elogio do enigma. Se fosse um jornalista, ou um académico, provavelmente não me ia satisfazer uma proposta tão enigmática. Mas na criação artística, muita gente faz o elogio do enigma. Quando ouvimos ou lemos o que alguns artistas disseram sobre o assunto, apresenta-se misteriosamente fácil contar uma história.
Lembrei-me de um livro. É do Álvaro Siza, e é um dos livros que não me sai da cabeça. Chama-se “Imaginar a Evidência”. A certa altura, sobre desenhar móveis, Siza escreve que

A ajuda mais importante é dada pela percepção da essência de cada móvel: essencialmente o que é?
A minha preocupação principal em desenhar, suponhamos, uma cadeira é a de que pareça uma cadeira. É a primeira questão. Hoje desenham-se muitas cadeiras que parecem outra coisa. A necessidade de originalidade e diferença conduz quase sempre ao abandono da essência de um determinado objecto.
Todos os objectos têm uma história. E contudo, vistos à distância, podem ser ligeiramente diferentes e é exactamente nesta ligeira diferença que se esconde o seu verdadeiro significado no tempo.

O elogio da essência. No caso é uma cadeira, mas se fosse uma narrativa, teríamos aqui uma bela pista: ir à procura da essência da narrativa. Anterior à forma que tenha, ou ao significado no tempo. Não ceder à necessidade de originalidade e diferença. No fundo, as perguntas que Bob Wilson fez: o que é? O que estou a dizer?
Isto lembra-me uma história que ouvi contada por Ingmar Bergman, numa entrevista.
Dizia ele que
Durante a Idade Média, a um certo carpinteiro chinês foi dada a tarefa de fazer um suporte para o sino do templo. Era uma missão muito honrada para este carpinteiro, e ele começou a trabalhar nela. Enquanto trabalhava, começou a pensar no dinheiro que ia ganhar por fazer o suporte para o sino, e aconteceu que o trabalho não saiu grande coisa. E, uma vez que ele era um carpinteiro chinês muito ambicioso, ele começou de novo. Nesta segunda tentativa, ainda assim, enquanto ele trabalhava começou a pensar como ia conquistar a admiração de toda a gente por causa deste suporte tão belo, e esta tentativa foi um falhanço, também. Portanto ele destruiu o suporte e começou pela terceira vez. Mas desta vez, ocorreu-lhe que alcançaria a imortalidade com este suporte para o sino, e a terceira tentativa também não correu bem. De maneira que o nosso carpinteiro chinês ficou furioso, como só um carpinteiro chinês pode ficar, e decidiu tentar uma quarta vez. Desta vez ele tinha apenas um pensamento na sua cabeça: criar um suporte para o sino. E, desta vez, ele conseguiu. E, ao conseguir, conquistou admiração, dinheiro e imortalidade.

Bob Dylan: Are you gonna see the concert tonight? Are you gonna ear it? Ok, you ear it and see it, and it’s gonna happen fast, and you’re not gonna get it all, and you might even ear the wrong words, you know? And then afterwards, I will be able to talk to you afterwards, but I don’t have nothing to say about this thins I write, I mean, I just write them, I don’t have to say anything about it, I don’t write them for a reason, there’s no great message. You know, if you wanna tell other people that, go ahead and tell’em, but I’m not gonna have to answer to it.

Quando Bob Dylan respondeu assim a um jornalista da revista Time, que acho que lhe tinha perguntado sobre o significado de alguma canção, parece-me que estava a reagir por isto: não havia significados maiores – pelo menos é o que nos diz; o seu trabalho terminou na criação da obra. Não houve uma agenda, ou um contexto: o urgente foi escrever a canção, ignorando o que a canção poderia provocar ou significar. A sua importância, as suas referências, talvez tudo isto até ultrapasse a consciência do próprio artista. Sem que seja planeado. Lembro-me de ler algures uma outra citação de Bergman em que ele diz que a pergunta mais difícil de responder é: o que estás a escrever é sobre quê?

Jornalista – Porque é que resolver fazer o filme assim?
João César Monteiro – porque não o pude fazer assado. O que é que queriam? Queriam telenovela? Não gosto da televisão. Dispenso. Não tem história. Quando contam uma história fazem uns efeitos de luz, não tem história.

Em tudo o que ouvimos até agora, parece que o significado do objecto no tempo é alheio ao próprio artista. Tenho encontrado esta sugestão de que a ignorância do artista em relação ao contexto da obra, esta espécie de ingenuidade ou entrega completa e se calhar alheia ao mundo, dizia, tenho encontrado quem encare isto como uma virtude em muitos lugares: nas aulas de poesia do Jorge Luis Borges, ele fala da literatura contemporânea como sendo muito sisuda, porque muito consciente de si; aconselha os escritores a não se editarem enquanto escrevem, a não compreenderem tudo o que escrevem. Faz o elogio do mistério. E na obra “O Grau Zero da Escrita”, de Roland Barthes, dou com este pensamento:

A expansão dos factos políticos e sociais no campo da consciência das Letras produziu um novo tipo de escritor, situado a meio caminho entre o militante e o escritor, tirando do primeiro uma imagem ideal do homem comprometido e do segundo a ideia de que a obra escrita é um acto. Ao mesmo tempo que o intelectual substitui o escritor, nasce nas revistas e nos ensaios uma escrita militante, inteiramente desprovida de estilo, e que é como que uma linguagem profissional da “presença”.

O intelectual ainda é apenas um escritor mal transformado, e, a não ser que se afunde e se torne para sempre um militante que já não escreve (alguns, por definição esquecidos, fizeram-no), é obrigado a voltar a partir da literatura como um instrumento intacto e fora de moda. Estas escritas intelectuais são pois instáveis, permanecem literárias na medida em que são impotentes e só são políticas pela sua obsessão do compromisso. Em suma, trata-se ainda de escritas éticas, em que a consciência daquele que escreve (já não ousamos dizer do escritor) encontra a imagem tranquilizadora de uma salvação colectiva.

Sophia: Havia um poeta que dizia que num poema o primeiro verso era dado pelos deuses, os outros eram feitos pelo poeta. Está claro que estas imagens são sempre um pouco, apenas… Dizem como as coisas se passam de uma maneira um bocado geral. Na realidade, eu sempre procurei escrever os versos que existem. Quer dizer, aqueles que são como que a verdade das coisas, e não uma verdade escrita em mim sobre as coisas. Isto é, sempre considerei, no fundo, que, aliás, já tem sido tanta gente, que o poeta é um lugar onde o poema se escreve. E que há uma atenção, a primeira qualidade dum poeta é uma atenção enorme ao universo, é encontrar uma certa transparência onde as coisas aparecem, onde o mundo se projecta e aparece e do qual ele toma consciência e ele traz à palavra. Uma coisa importante da poesia: a poesia é a palavra e a poesia nasce sempre do caos, da confusão da qual o homem emerge através da palavra. E, por isso, não se trata bem de improviso. É evidente que há uma parte de ofício num poeta. (…) O que o poeta cultiva em si é essa espécie de transparência, de atenção, que torna possível o aparecimento do poema. Eu muitas vezes digo que um poeta escreve, ao contrário dum ensaísta, por exemplo, escreve não para dizer o que sabe mas para saber o que sabe. É uma diferença fundamental.

Este é um lugar em que acredito. Pelo menos é uma ideia inspiradora, e que Sophia de Mello Breyner refere não apenas nesta entrevista, mas em alguns textos que adoro e que se chamam “Arte Poética”. No fundo, apresenta tudo isto como uma coisa muito menos formal; como um assunto da honestidade, ou da sinceridade. A arte como o exercício de descobrir qualquer coisa mais do que criar qualquer coisa. Claro que não prescinde da dimensão de ofício, mas é um ofício ao serviço de qualquer coisa simples. Um ofício que, de certa maneira, é um jogo. Nos ensaios de teatro sempre senti que durante uma primeira parte do trabalho estou a descobrir uma espécie de universo, que se testam os limites do pormenor neste território para que seja possível, a certa altura, habitá-lo livremente. Entregar-me. Brincar nesse lugar.

Lembro-me da ironia de que Cervantes usa para abrir o Dom Quixote (ele próprio um bom exemplo para a nossa conversa), fazendo pouco dos formalismos intelectuais dos seus contemporâneos (participando neles, ainda assim); ou do aborrecimento que podemos sentir nos escritos de Gertrude Stein sobre literatura – digo aborrecimento, porque ela escreveu como quem rompe com as coisas.

Parece que não é apenas tratando os minutos como pesos na balança que se consegue construir uma narrativa. Por vezes, tudo isto, todos estes jogos e reflexões, todo este trabalho, toda a agonia e suor servem um propósito misterioso. Diria Faulkner que para escrever sobre os problemas do espírito. Para escrever sobre os conflitos do coração humano consigo mesmo, a única coisa porque vale a pena suportar os martírios da escrita.

Faulkner: Our tragedy today is a general and universal physical fear so long sustained by now that we can even bear it. There are no longer problems of the spirit. There is only the question: When will I be blown up? Because of this, the young man or woman writing today has forgotten the problems of the human heart in conflict with itself which alone can make good writing because only that is worth writing about, worth the agony and the sweat.

Chegamos ao fim desta pequena caminhada com nome de carta. Uma caminhada confusa, mas num bairro óptimo, cruzámo-nos com gente brilhante. Percebo agora que comecei por querer saber como se conta uma história, para acabar a pensar no ofício do poeta (do artista, mas em particular focado na escrita). Percebo que se confunde a história com o seu contador. Hei de continuar esta procura. E tudo porque um príncipe imaginado, à beira da morte, pediu ao seu amigo que aguentasse um pouco mais o sofrimento que é estar vivo para contar a sua história.

Pois é, poetas, bons amigos, ficam com estas sugestões: lancemo-nos para o ofício de contadores de histórias com as perguntas de Robert Wilson. E como se contam os problemas do coração, senhor Faulkner? Como se cultiva a transparência, estimada Sophia? Como resistimos ao abandono da essência, mestre Siza?

Bob Wilson (excerto de “Hamlet: a monologue”):
Ó Deus, que nome perdido deixarei de mim –
De actos carnais, sangrentos, contra a natureza,
De sentenças acidentais, de assassínios ao acaso,
De mortes preparadas pela manha ou pela força,
E, no final, os estratagemas, enganando-se,
Recaíram sobre a cabeça do estratega; tudo isso posso –
Tivesse eu tempo,
Se a morte, oficial, cruel, não fosse tão pontual nas capturas.
Ai, poderia dizer-vos –
Porém deixai – – – O resto é silêncio.

As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirijo a quem assina a Newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral, um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu. Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt

O meu nome é Guilherme Gomes, despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email: creta@teatrodacidade.pt

Neste episódio ouvimos um conjunto de entrevistas e discursos que deixo na transcrição, e um excerto de HAMLET: a monologue, um espectáculo de Bob Wilson.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu, através do VISEU CULTURA.