As Cartas de Creta, neste momento, existem enquanto podcast. Abaixo fica a transcrição deste episódio.
Por estes lados, não é raro ver da estrada os montes como se fossem ondas do mar. E, em dias de inverno, entre os montes há nevoeiro. Se tiver de evocar uma imagem para ilustrar a memória é esta que escolho: uma paisagem de nevoeiro, onde vemos os cumes de montes, e uma ou outra clareira rápida.
No outro dia dei por mim a pensar na Sé de Viseu. Estava a tentar lembrar-me de um pormenor: de um canto dos claustros, eu vejo uma das torres da catedral. Não sei por que razão, esta é uma das imagens mais presentes da minha memória. Ocorre-me frequentemente sem que me esforce. E sempre que estou pela zona, vou a esse canto confirmar a imagem que dele tenho. É que não sei dizer quantas vezes uma memória não foi imaginação.
Neste momento, algures no Universo há duas sondas chamadas Voyager. Foram lançadas no final dos anos setenta, e estão cada vez mais afastadas do planeta terra. Cada uma delas leva consigo um disco de ouro com músicas, sons do planeta, saudações em várias línguas, alguns exemplos básicos de aritmética, há o som de um bebé a chorar e uma mãe que diz num inglês americano: oh come on now, be a good boy.
Por enquanto, estas sondas são instrumentos de exploração científica. Mas um dia há de chegar em que os seus geradores não vão ser capazes de alimentar o sistema. Nesse dia, estas sondas passam a ser caixas do tempo: uma memória do planeta terra a vaguear pelo universo. E, se um dia forem encontradas, se aqueles que as encontrarem conseguirem ouvir o disco de ouro, não poderão senão imaginar o que seria este planeta: a forma do bebé e da mãe que ouvem; ou quem seriam estas pessoas que falam em nome da humanidade inteira; será que quando ouvirem “Dark Was The Night”, sentem a solidão que é missão da música no disco ilustrar?
Em Maio de 2020, é como se descobríssemos uma das sondas Voyager, e ouvíssemos o disco dourado.
E eu dou por mim a fazer percursos de memória nas duas cidades que melhor conheço: Lisboa e Viseu. Faço o exercício de imaginar qual será o caminho mais rápido entre o ponto A e o ponto B. E imagino mesmo o que é caminhar esse trajecto.
Salto pormenores, inevitavelmente, e misturo dias diferentes no mesmo caminho.
A mesma rua tem dias diferentes quando a atravesso na memória.
Peter Handke, numa das minhas leituras deste período de isolamento, diz-me que toda a formulação, mesmo a formulação de coisas que aconteceram realmente, é mais ou menos uma ficção. Será menos se nos contentarmos com o lembrar vagamente um acontecimento; mais, se tentarmos ir ao pormenor.
Em Maio de 2020 tínhamos previsto começar o projecto CRETA. Mas, mesmo que comecemos a reconquistar, cuidadosamente, as ruas que agora só imaginamos, nós não podíamos ousar convidar-vos para um encontro.
Por isso, pensámos numa alternativa:
Primeiro, propomos o exercício que acabo de descrever, como se ouvíssemos o disco dourado: um exercício de imaginação para lugares concretos, que sabemos que existem, talvez já lá tenhamos estado, e que podemos mais tarde visitar: para isso convidámos a companhia Mochos no Telhado e o João Cachola para escreverem dois episódios de um novo podcast. Chama-se “O Lugar de Onde se Ouve”, para compensar a nossa ausência do “lugar de onde se vê” que é o Teatro. O primeiro episódio é lançado no dia 16, o segundo no dia 23 de Maio.
Mas antes disto, propomos retomar o clube de leitura de peças de teatro. E no dia 12, às 21h, temos encontro marcado para ler textos de Karl Valentin. Não será no estúdio da Inês Flor, mas numa etérea sala online na aplicação Zoom. Valentin é uma referência inevitável no teatro cómico e cabaret. Entre os vários textos que vamos ler há um que se chama “Porque Estão os Teatros Vazios” – o título é oportuno, o conteúdo é eterno. Podem inscrever-se para esta sessão do clube (independentemente de onde estejam) no site do CRETA.
Este mês, portanto, exercitamos a memória e a imaginação, e temos estas interrogações: como é a cidade de que se lembram? E, qual é a maneira mais rápida de ir, a pé, do Rossio à Igreja da Misericórdia, em Viseu; ou do Chiado a Campo de Ourique, em Lisboa?
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Esta foi a décima terceira carta de CRETA. As cartas de CRETA são uma mensagem que todos os meses dirigimos a quem assina a newsletter do projecto CRETA – laboratório de criação teatral; um projecto que o Teatro da Cidade mantém em Viseu.
Podem saber um pouco mais em creta.teatrodacidade.pt
Despeço-me, lembrando que podem responder a esta mensagem através do nosso email creta@teatrodacidade.pt.
Algumas músicas usadas nesta gravação vêm do site bensound.com.
CRETA – laboratório de criação teatral é um projecto apoiado pelo Município de Viseu através do VISEU CULTURA.
Obrigado por ouvirem; até ao próximo mês.